Mesmo sendo o foco de pesquisas, livros e documentários nos últimos anos, a guerrilha do Araguaia permanecia como um dos episódios mais obscuros (e sangrentos) da ditadura militar. Um dos casos, até então inédito, chama a atenção. Um militar encarregado de fuzilar uma guerrilheira se apaixonou por ela. Eles se beijaram pouco antes da execução. Mas isso não o impediu de cumprir a tarefa (leia abaixo).
“Ela ficou me olhando nos olhos, chorando. Eu não aguentei e chorei muito. Caí em prantos. Ela chorava, mas ficou firme, de pé, aguardando sua hora. Tirei a arma e apontei pra cabeça”, relatou o militar Robson, um dos entrevistados do livro “Borboletas e Lobisomens – Vidas, Sonhos e Mortes dos Guerrilheiros do Araguaia”.
Circunstâncias desconhecidas do conflito, como este caso, foram elucidadas pelo jornalista, historiador e professor Hugo Studart no livro lançado nesta terça-feira (17), em Brasília.
Studart chegou à conclusão de que 77 pessoas foram mortas no conflito: 29 guerrilheiros em confronto, 22 executados por soldados, um “justiçado” pelos guerrilheiros, 15 camponeses e 10 militares.
O jornalista se debruçou sobre o assunto por quase 10 anos, vasculhando mais de 15 mil documentos, cruzando dados oficiais e testemunhais e conversando com mais de 150 pessoas.
Durante a ditadura, um grupo de militantes do PC do B se embrenhou na floresta amazônica, entre o Pará e o Tocantins, e começou um foco de guerrilha contra o governo militar. A intenção era criar um território independente. Mais de 4 mil homens das Forças Armadas foram mobilizados para exterminar os cerca de 100 integrantes do movimento.
Áurea e Robson
Um militar, de codinome Robson, foi destacado para fuzilar a guerrilheira Áurea Eliza Pereira, de codinome Áurea. Ela havia sido capturada por homens do Exército, e estava magra e doente. Depois de três dias de interrogatório, ele acabou se apaixonando pela militante. Robson não teve o sobrenome divulgado no livro.
Quando recebeu a ordem de fuzilar Áurea, Robson titubeou. A chamou para “tomar uma cerveja e dançar a noite inteira”. Naquele momento, a guerrilheira já estava dentro de um buraco, onde ocorreria a execução. Ela chorou e pediu para que ele não lhe desse esperanças.
Robson baixou a escada para Áurea sair do buraco. Os dois se beijaram e se abraçaram, chorando. Então o militar sussurrou no ouvido dela: “agora você vai ter que descer”. Ela desceu.
Os dois se olharam nos olhos durante todo o tempo. E então ele a alvejou.
“Quando um homem sabe que é sua última refeição, ou o último beijo, ele fica comovido e aproveita. Mas quando é o último beijo de uma mulher, ela se entrega inteira. Nunca conheci uma mulher com tanto amor quanto a Áurea”, relatou o militar em depoimento ao livro. Ele diz que se apaixonou por ela e “quer acreditar” que ela se apaixonou por ele.
Leia o trecho do livro “Borboletas e Lobisomens – Vidas, Sonhos e Mortes dos Guerrilheiros do Araguaia”, de Hugo Studart:
O beijo da morte
Ainda havia um pouco mais de uma dúzia de guerrilheiros vivos. De acordo com a pesquisa, seriam eles quatorze sobreviventes, em ordem alfabética: Áurea (Áurea Eliza Pereira); Beto (Lúcio Petit da Silva); Chica (Suely Yumiko Kanayama); Daniel (Daniel Ribeiro Callado); Dina (Dinalva Conceição Teixeira); Lia (Telma Regina Cordeiro Corrêa); Lourival (Elmo Corrêa); Manoel (José Maurílio Patrício); Maria Diná (Dinaelza Santana Coqueiro); Peri (Pedro Alexandrino de Oliveira Filho); Tuca (Luiza Augusta Garlippe); Valdir (Uirassu Assis Batista); Val (Walquíria Afonso Costa) e Vítor (José Toledo de Oliveira).
Foram caçados implacavelmente por cerca de 250 homens do Exército,guiados por cerca de sessenta camponeses recrutados na área. Um a um, foram sendo abatidos. Ou presos, interrogados e executados. Áurea foi presa em fins de março, ao lado de um camponês chamado Batista, que aderira à guerrilha. Foram ambos capturados pelo camponês Adalberto Virgulino – em troca de oitocentos cruzeiros e de um maço de cigarros, de acordo com Elio Gaspari, em A ditadura escancarada. Batista foi enviado para Xambioá. Áurea, por sua vez, foi levada para Marabá, em local conhecido por Casa Azul, à beira do rio Itacaúnas, onde os comandantes militares instalaram-se para coordenar toda a repressão à guerrilha. Áurea carregava um bebê, uma menina de três meses. Também estava magra, extremamente debilitada, com malária, a pele tomada por pústulas de leishmaniose, há muitos meses sem menstruar.
Um sargento da equipe de operações especiais Jiboia, codinome Robson, foi encarregado de interrogá-la e, depois, executá-la. Era louro, olhos azuis, barba e cabelos longos, como os de roqueiro. Era assim que andavam os militares da área de informações: disfarçados de universitários rebeldes. Ele já havia executado alguns guerrilheiros; Áurea seria mais uma.
Ela permaneceria entre seis e sete dias na Casa Azul. Foram três dias de interrogatório. Somente conversas amenas, garante o militar em narrativa à pesquisa. “Não havia qualquer necessidade do uso da violência”, explica.
Ele relata que tentou reanimá-la, usando uma técnica de interrogatório que busca estabelecer a empatia com a prisioneira. Ele contou sua própria história pessoal. E seus conhecimentos sobre as organizações de esquerda. Ela contou sua história. No movimento estudantil e sua história no Araguaia. Também relatou alguns episódios específicos da guerrilha. Sobre onde estavam escondidos os camaradas, àquela altura, não havia quase nada a relatar. Já estavam quase todos mortos, e aqueles ainda vivos, perdidos na mata, dispersos uns dos outros, certamente pulando de choupana em choupana em busca de comida, tentando encontrar alguma rota de fuga. Em nenhum momento renegou suas opções ideológicas. Disse ainda que sentia muito ódio de ter sido renegada pelos próprios companheiros – referindo-se ao fato de não ter sido uma das eleitas de Osvaldão.
Então veio a ordem de executar a prisioneira. Havia um buraco, de 3x3m, com 2,5 m de profundidade, dentro de uma das construções daquela instalação militar. Áurea foi levada para lá em um final de tarde. Desceu a escada de cordas para dentro da cova. Robson tergiversou, pensou em adiar a execução.
“Áurea, você quer tomar cerveja comigo e depois dançar a noite inteira em um desses botecos à beira do Rio Itacaiunas?” – indagou.
Só então a guerrilheira chorou:
“Não me dê falsas esperanças, porque depois você não vai poder cumprir” – teria dito a guerrilheira, de acordo com as lembranças do militar.
Ainda assim ele insistiu. Baixou a escada e ela subiu, bem devagar.
Então ele perguntou:
“Você quer me dar um beijo?”
“Você faria isso por mim?” – teria respondido a guerrilheira.
Eles então se abraçaram, de acordo com o militar. Um abraço apertado, forte, longo. Ele, aos 25 anos, então lhe beijou a boca. Ela, aos 24, teria correspondido. E assim teriam ficado por muito tempo, se abraçando e se beijando, adiando ao máximo a chegada da hora da morte.
“Quando um homem sabe que é sua última refeição, ou o último beijo, ele fica comovido e aproveita. Mas quando é o último beijo de uma mulher, ela se entrega inteira. Nunca conheci uma mulher com tanto amor quanto a Áurea” – relata o militar.
Em determinado momento, o militar se afastou um pouco e disse à guerrilheira, ao pé do ouvido, algo como “agora você vai ter que descer”.
Ela então desceu a escada, resignada, bem devagar. Eis o relato do executor:
Ela ficou me olhando nos olhos, chorando. Eu não aguentei e chorei muito. Caí em prantos. Ela chorava, mas ficou firme, de pé, aguardando sua hora.
Tirei a arma e apontei pra cabeça. A gente se olhava o tempo inteiro nos olhos e chorava. Hoje tenho certeza de que me apaixonei por ela e quero acreditar que ela se apaixonou por mim. Minha vontade era fugir com a Áurea, sumir no mundo. Mas estávamos em lados opostos, ela sabia disso.
O militar chorava muito ao narrar este episódio. Num dado momento, me apontou o dedo indicador e disse: “Quando escrever sobre ela, trate-a com todo respeito, pois ela morreu com dignidade e coragem. Foi a mulher mais doce que conheci na vida.”
Áurea foi retirada do buraco por outra equipe e enterrada no novo cemitério de Marabá, pouco mais de 1 quilômetro distante da Casa Azul (atual sede do DNIT, no bairro Amapá).