Após 21 anos na Justiça, processo de fusão entre Nestlé e Garoto finalmente será decidido pelo Cade

O órgão antitruste do governo travou a união entre as empresas em 2002
O Cade impediu o negócio entre as empresas em 2004. É o mais longo processo em curso no órgão e ajuda a explicar o “Custo Brasil”

Continua depois da publicidade

Brasília – Chocólatras de todas as idades, alegrai-vos! A fusão entre a gigante de alimentos multinacional suíça Nestlé e a capixaba brasileira Garoto pode ter um desfecho brevemente. O caso ilustra como o Estado, que nada produz, consegue atrapalhar os negócios no Brasil. Há 21 anos a Nestlé, que comprou a Garoto, não consegue concluir o negócio feito em 2002 e barrado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) em 2004. Entre idas e vindas de advogados da Nestlé, a interferência do Estado nos negócios parece ter sido freada por uma decisão judicial definitiva que sairá em breve obrigando o Cade a reabrir o processo.

Essa novela mal escrita começou quando a Nestlé acertou a compra da empresa com o filho do fundador da empresa, Helmut Meyerfreund, que faleceu em 20 de julho de 2018, após uma luta de 15 anos contra o Alzheimer.

O processo entre as duas empresas teve início em 2002, quando a Nestlé comprou a Garoto. O Cade vetou a operação em 2004 e a primeira recorreu na Justiça. No ano seguinte, a compra foi autorizada, contudo, em 2009, a decisão foi anulada, o que obrigou o Cade a analisar a operação mais uma vez.

Em meio à briga judicial da empresa para a conclusão e autorização da aquisição, a lei recebeu alterações. Dessa forma, em 2012, o Cade passou a ser responsável por autorizar a compra de empresas, o que ocorria apenas após a aquisição, por isso a operação foi cancelada em 2004.

Na época da transação, a Nestlé tinha 34% do mercado de chocolate brasileiro, enquanto a Lacta, sua maior concorrente, possuía 33%. Após a aquisição da Garoto, a primeira passou a ter 58%.

A fusão entre as empresas continuou ocorrendo na Justiça, quando a Nestlé recorreu em diferentes instâncias. Contudo, o Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª região foi de acordo com o recurso impetrado pelos advogados da Nestlé, em 2018. Nesse sentido, a decisão do TRF foi de que o Cade deveria reabrir o processo da aquisição. Assim, em 2021, o então presidente do Cade, Alexandre Barreto de Souza, reabriu o processo.

Aprovação do processo

Com a autorização da Justiça e a determinação de reabertura do processo de aquisição, bem como a determinação de Barreto, o Cade desistiu da disputa judicial.

“Considerando a determinação vigente do TRF1, bem como a pequena probabilidade de reversão dessa decisão judicial, a probabilidade de o litígio judicial durar um longo tempo, os prejuízos público e privado decorrentes dessa demora, e a possibilidade de as condições do mercado terem se alterado significativamente, entendo que é necessária alguma solução por parte do Tribunal do Cade.”, escreveu o então presidente Barreto.

Dessa forma, após 21 anos de processo, a aquisição deverá receber a análise do Cade para dar fim ao caso Nestlé e Garoto.

Com Garoto, Nestlé cresce mais de 7%

A Nestlé reforçou o seu negócio de chocolates nos últimos anos, para compensar uma possível redução no portfólio de marcas. A companhia avaliava vender marcas icônicas, para garantir aprovação final da compra da Garoto, feita em 2002 e barrada pelo Cadev. Mas após uma decisão judicial de agosto, a Nestlé passou a trabalhar com a perspectiva de não vender mais nenhuma marca. A estratégia rende bons frutos à empresa — no ano passado a receita com chocolates cresceu mais de 7%, enquanto o mercado teve expansão de 5,8%.

A fusão da Nestlé com a Garoto é o caso mais longo em avaliação pelo Cade. Em 2017, para tentar por fim ao caso, a Nestlé negociou um acordo com o Cade, que previa a venda de dez marcas, incluindo Serenata de Amor, Sensação, Lollo e Chokito. O prazo para a venda era outubro de 2017. Esse prazo foi prorrogado para meados deste ano, mas as marcas não foram vendidas. A Nestlé alegava que a crise econômica a impedia de fechar negócio.

Em 28 de agosto de 2022, o Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região decidiu anular a decisão do Cade de 2004. E determinou uma nova análise do caso pelo órgão regulador. O Cade ainda pode entrar com recurso questionando a decisão do TRF. Procurado, o Cade informou que ainda não tem uma resposta sobre o assunto.

“O mercado mudou e nenhum dos cenários apontados pelos críticos em 2002 se materializou. Nesses 16 anos entraram novos concorrentes no mercado. Os níveis de concentração que motivaram a censura do Cade à operação não existem”, diz Liberato Milo, vice-presidente de chocolates da Nestlé no Brasil.

Em 2002, quando comprou a Garoto, a Nestlé aumentou sua participação no mercado de chocolates de 30,8% para 55,2%. Hoje, a Nestlé ainda lidera, mas com uma participação bem mais baixa, de 34,1%, de acordo com a Euromonitor International. Com a redução da fatia da Nestlé, Milo avalia que a necessidade de vender marcas deixou de existir.

Em 2018, ano da morte de Helmut Meyerfreund, a Nestlé fechou o ano com expansão em relação ao ano passado. Milo na época disse que a empresa, com Nestlé e Garoto juntas, cresceu acima da média do mercado. As previsões se confirmaram e em 2019, as foram aceleradas, impulsionadas com a economia crescendo mais do que no ano anterior.

O mercado de chocolates deve cresceu naquele ano 2% em volume, para 274,5 mil toneladas, e 5,8% em valor, para R$ 13,28 bilhões, segundo dados da Euromonitor. Em 2019, a projeção se confirmou de novo e o incremento em volume de 2,5%, resultou num aumento real em vendas de 2,6%.

Incremento de portfólio

As vendas da Nestlé crescem acima de 7% em receita. Liberato Milo considera que esse aumento é resultado de um trabalho intenso de reformulação das linhas de produtos, com chocolates mais sofisticados. “Mesmo nos anos de crise, o mercado de chocolates cresceu em receita. Isso porque o mercado está mais sofisticado. O consumo de barras de 200 gramas de chocolate ao leite cedeu lugar para tabletes menores e com diferentes sabores e recheios. Nos últimos quatro anos, renovamos 100% do nosso portfólio para atender essa demanda nova de produtos”, informou.

As mudanças incluíram desde redução de açúcar e aumento do teor de cacau, até criação de novos produtos. Em marcas icônicas, houve mudança de fórmula. O Prestígio passou a ter menos açúcar e mais coco no recheio. O Baton Garoto passou a ter o leite como principal ingrediente.

Dos 1.500 produtos de chocolate vendidos no Brasil, a Nestlé responde por 300 a 350 linhas. Em 2018 a companhia fez 50 lançamentos de produtos, o dobro do número de 2017. Para 2019, a previsão manteve o mesmo ritmo. “Existe espaço no mercado para lançar mais 50 produtos nos anos seguintes. E já temos linhas em desenvolvimento”, afirmou, o que acabou se concretizando.

O executivo da Nestlé cita como exemplos as novas linhas lançadas, como as variedades do chocolate em barra Talento misturado com chocolate orgânico, recheado com frutos da Amazônia, em versões sem açúcar e sem glúten. A empresa colocou no varejo o Nestlé Mio, uma linha de chocolates com duplo recheio de leite e calda de frutas (de goiaba, morango e laranja). Também foi lançado o chocolate premium Les Recettes de L’Atelier, feito com pedaços de castanhas e frutas naturais. Lançou chocolates da marca Talento com recheios de doce de leite e creme de avelã, e linhas com chocolate amargo e recheios de framboesa, maracujá, caramelo salgado e pedaços de puro cacau (nibs).

Na área de produção, diz Milo, a empresa fez investimentos de “centenas de milhões de reais” para introduzir as novas linhas de chocolates recheados. Só em 2017 o investimento em fábricas foi de meio bilhão de reais.

A empresa também informou que fez um trabalho de parceria com 10 fazendas de cacau para melhorar a qualidade da amêndoa produzida no país. Segundo Milo, entre 80% e 90% do cacau usado nos chocolates Nestlé é brasileiro. Nas marcas Garoto e Talento, 100% do cacau é brasileiro. A empresa estuda ampliar essa linha de fornecedores no Pará, maior produtor da amêndoa no mundo.

A Nestlé também redesenhou a marca Garoto, para atender principalmente as gerações Z e “millennial” — que engloba jovens nascidos entre as décadas de 1980 e 2010, uma população de pouco mais de 50 milhões de brasileiros.

“Percebemos em pesquisas que esse público achava a marca muito séria”, afirmou Milo. Para entender melhor esse público, a Nestlé montou uma equipe de 40 pessoas, que monitora em tempo real tudo que esses consumidores falam em redes sociais sobre chocolate.

Milo disse que as linhas de Talento com recheio de doce de leite e com nibs de cacau e uma linha de Garoto Cores (recheado com confeitos) foram desenvolvidos a partir desse monitoramento. “É preciso saber o que esse público busca para continuar à frente no mercado”, disse o executivo.A Nestlé também se inspirou neste ano na frase: “O brasileiro precisa ser estudado pela Nasa” para desenvolver a campanha da Garoto. Na campanha publicitária, cientistas tentam entender palavras como “bitoca”, “eita” e “mano do céu”. A empresa vai lançar latas de chocolates da Garoto com algumas dessas expressões.

Patricio Torres e Liberato Milo, executivos da Garoto/Nestlé. (FOTO: Divulgação)

Milo, que passa a responder como Global Category Lead Chocolate na sede da Nestlé, na Suíça, falou do orgulho de ter ficado a frente da Garoto. “A Garoto é uma empresa que nasceu em terra capixaba e tenho muita satisfação de ter ficado à frente dessa organização 100% brasileira”, afirmou.

Helmut Meyerfreund filho do fundador da fábrica, era considerado pelos funcionários a própria figura do Garoto que lhe dá o nome, tal o seu entusiasmo pelo trabalho

Helmut Meyerfreund

O ex-presidente da Chocolates Garoto, Helmut Meyerfreund, 82 anos, morreu numa sexta-feira de 2018, em São Paulo. O corpo foi transladado para o Espírito Santo e o enterro ocorreu no cemitério Parque da Paz, em Vila Velha, no domingo (22), daquele mesmo ano.

Querido pelos funcionários, Helmut Meyerfreund foi o grande responsável pela expansão e crescimento da Chocolates Garoto e é uma história que vale a pena ser contada.

O empresário se mudou para São Paulo quando vendeu a fábrica para a Nestlé, para cuidar da saúde. Em 15 anos de avanço da doença, o Alzheimer foi implacável e Meyerfreund já não reconhecia as pessoas.

Na época da morte do “Garoto”, muito emocionada, a ex-secretária que trabalhou com ele por 28 anos, Petra Günter Vieira, disse que soubera da morte pelo filho do empresário, Victor Meyerfreund. “Todos as pessoas que estou ligando estão se emocionando muito, só que para ele foi um descanso, porque a doença já tinha avançado muito. Então ele descansou. Ele foi tranquilo, foi sereno. Já tem quase 15 anos que ele estava com a doença (Alzheimer)”, contou.

De acordo com Petra, os médicos já tinham preparado a família e a causa da morte foi o quadro final de Alzheimer. “Eles já estavam preparados que seria a qualquer momento. Os médicos já tinham preparado. Todo mundo já estava meio de sobreaviso”.

“Era uma pessoa de um coração que não tinha igual. Muito humano. Muito humilde. Muito igual a gente, não tinha diferença. Vivia tudo muito intensamente. Eu sempre mexi com ele e falei que ele realmente era o garoto. Ele sempre foi uma pessoa de coração muito bom, não tinha maldade no coração”, disse a ex-colaboradora.

Helena e Helmut Meyerfreund em 2008. (FOTO: Divulgação)

Em 2013, aos 70 anos, Helena, a esposa do ex-presidente da Garoto, Helmut Meyerfreund, morreu no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo. Ela lutava contra um câncer desde 2009. Helena deixou quatro filhos e, na época, 10 netos.

Durante os 40 anos que esteve à frente da empresa, Meyerfreund ampliou e modernizou as instalações e processos produtivos, adotou políticas comerciais, fez ajustes importantes no sistema de logística e distribuição e consolidou a Garoto entre as 10 maiores fábricas de chocolate do mundo, com produtos presentes em mais de 50 países.

“A Medalha de Ordem do Mérito Industrial da CNI, recebida por ele em 1992, foi a primeira concedida a um capixaba. Helmut construiu uma linda história que aliou, em um só tempo, amor à marca e um raro senso empreendedor, ajudando a mostrar que a arte da gestão vai muito além de números objetivos: tem também a ver com sentimentos e valores humanos”, disse, ao se despedir do amigo, Léo de Castro, presidente da Findes — a Federação da Indústrias do Espírito Santo.

Fábrica da Garoto em Vila Velha. Helmut Meyerfreund, filho do fundador da fábrica de doces, se tornou um dos responsáveis por tornar o estado do Espírito Santo uma referência na fabricação de chocolates no mundo

Criação da Chocolates Garoto

Embora o Cade tenha atrapalhado muito o negócio, a Garoto pertence ao grupo Nestlé. A empresa nasceu em 16 de agosto de 1929 como uma fábrica de balas, a H. Meyerfreund & Cia., em um galpão localizado na Prainha. A empresa foi fundada pelo imigrante alemão Henrique Meyerfreund, pai de Helmut.

As primeiras balas eram vendidas por meninos, em tabuleiros, nos pontos de bonde de Vila Velha e assim logo passaram a ser chamadas balas Garoto. Em 1962, a H. Meyerfreund transforma-se em uma sociedade anônima de capital fechado: a Chocolates Garoto S/A.

Ainda na década de 1960, os filhos de Henrique, Meyerfreund Helmut e Ferdinand, passaram a dividir responsabilidades com o pai. A partir de 2002, a empresa passou a pertencer à multinacional Suíça Nestlé, que dá continuidade ao segmento da marca e dos produtos.

Vista aérea da fábrica no Espírito Santo

“Um homem impressionante”

A jornalista capixaba Denise Zandonadi, que acompanhou de perto o processo de venda da Garoto e atuação do empresário, fez um resumo da trajetória de sucesso de Helmut Meyerfreund.

“Ele era um homem impressionante. Foi seu pai quem fundou a fábrica de balas e foi com ele que aprendeu a administrar a empresa. Aquela famosa pastilha forte da marca Garoto foi uma das primeiras balas que a fábrica produziu. Mas quando Helmut herdou a companhia, também passou a produzir chocolates.

Como a família é descendente de alemães, ele acabou indo estudar Engenharia na Alemanha, de onde voltou entusiasmado, com ideias para novos equipamentos e de modernização da empresa. Foi assim que ele desbravou o mercado até chegar ao ponto de fazer da companhia uma marca moderna e avançada, com o chocolate tão reconhecido que chegou a fazer frente às grandes empresas do ramo, como Hershey’s, Lacta e Nestlé.

Os produtos fizeram tanto sucesso que acabaram sendo exportados. Porém, após alguns anos, a fábrica acabou sendo vendida. Desentendimentos entre familiares interferiram nos negócios.

Helmut também era conhecido por ter desenvolvido um relacionamento mais próximo de seus funcionários. Não é mentira a história de que ele conhecia mesmo os colaboradores. Ele era muito querido e conhecia cada processo do funcionamento da fábrica.

Como repórter, acompanhei todo o processo de venda da Garoto. Foi nós quem demos a primeira notícia (Denize trabalhou na Gazeta, em Vitória-ES), mesmo sendo desmentida várias vezes. Mas o Helmut já não estava mais na presidência. O que posso dizer é que ele era um executivo com sensibilidade e dedicação, sempre interessado nos assuntos diversos da empresa, além de uma postura digna com seus funcionários.”

Reportagem: Val-André Mutran – Correspondente do Blog do Zé Dudu em Brasília.

1 comentário em “Após 21 anos na Justiça, processo de fusão entre Nestlé e Garoto finalmente será decidido pelo Cade

  1. Jussara de Oliveira Responder

    Péssima fusão. A qualidade dos chocolates Garoto despencou, isso sem contar os “truques” de menos chocolate pelo mesmo preço. Pena que a intervenção do governo não evitou essa junção que só prejudicou o consumidor.

Deixe seu comentário

Posts relacionados