Artigo: A demonização da contratação por inexigibilidade

O advogado Sebastião Tadeu Reis faz considerações sobre o processo de inexigibilidade para contratação por entes públicos, tão criticado atualmente pela justiça.

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A licitação pública, atualmente, tem sido içada a um  elevado patamar: princípio universal ou dogma. O gestor público pode “dormir tranquilo” se licitar, pois presume-se, em absoluto, que o resultado da licitação é sempre o mais eficiente e econômico para o interesse público. Ao revés, a contratação direta por inexigibilidade é demonizada e arriscada para o agente público; deve ser rechaçada, uma vez  que,  não  garante  a  isonomia, nem  a  eficiência, tampouco  reduz  a corrupção. Essa é a visão reinante nos órgãos de controle.

Mas, na verdade, ambas são instrumentos para aplicações diversas. A licitação é operada nas hipóteses em que se verifica um ambiente negocial competitivo e disputado, isto é, quando existe a pluralidade de fornecedores e seu objeto é comparável. De outro lado, o lugar da inexigibilidade é nas hipóteses em que inexistam padrões objetivos para a definição, a comparação e o julgamento do objeto buscado.

O sistema de negócios públicos – licitações públicas   e  contratações  diretas – deve  ser desmistificado, não pode ser confundido com suas mazelas.

Os órgãos de controle, normalmente, identificam as contratações diretas por inexigibilidade como um ato ilícito, inclusive caracterizando-a como uma situação excepcional que não deve ser empregada de forma corriqueira na Administração Pública.               

Aliás, o preconceito dos controladores  institui um clima de medo na Administração Pública. Os gestores deixam de tomar decisões com receio de responsabilização pessoal, uma vez que divergências doutrinárias e jurisprudenciais são caracterizadas como ato ímprobo. Nesse contexto, os agentes públicos não contratam mais por inexigibilidade, preferem falsificar critérios objetivos em editais de licitação, a fim de reduzir o risco pessoal.

Como asseveram os juristas, Egon Bockmann e Renato Geraldo Mendes: (MOREIRA, Egon Bockmann; MENDES, Renato Geraldo. A questão da redução dos riscos e a garantia da segurança. Revista Zênite ILC – Informativo de Licitações e Contratos, Curi- tiba: Zênite, n. 265, p. 239-242, mar. 2016.

“Sempre que a palavra “polícia federal” e “operação” aparecem juntas, em seguida, ouvimos outra associada: “licitação”. Raramente aparece a palavra “inexigibilidade” no lugar de licitação. A razão é simples. Quem tem predisposição para praticar a corrupção não contrata por dispensa ou inexigibilidade, faz licitação (muitas vezes, do tipo técnica e preço)  e  sucessíveis e inexplicáveis termos aditivos. É assim que os cartéis funcionam: por meio de pactos que dirigem o resultado de várias licitações, a beneficiar indevidamente a todos os envolvidos. […] A licitação, em diversos desses casos, tem servido de álibi; é tudo o que alguns precisam para justificar o que não deveria fazer. Pretende-se legitimar o resultado – qualquer que seja ele, por mais lesivo aos cofres públicos  –  pelo procedimento. […]  Por outro lado, ao contrário  do que se pode pensar, a contratação por inexigibilidade de objetos que não podem ser licitados por inexistir padrão objetivo de julgamento revela a boa-fé e o espírito público do agente em viabilizar o melhor negócio para a Administração, bem como também em pautar sua conduta pela transparência e não pela dissimulação.

Haja visto, o caso que viralizou na internet, do escritório de advocacia do presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Felipe Santa Cruz, que recebeu recursos de estatal sem licitação.  Como verificado pelo projeto Comprova, os contratos existem, foram firmados com a Petrobras e o Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados) e podem ser verificados nos portais da transparência das estatais.

Segundo a lei de licitações nº 8666/93), a contratação de serviços técnicos, entre eles a defesa de causas judiciais ou administrativas, não exige a realização de processo licitatório (artigo 25, inciso II e artigo 13, inciso V). 

A mesma possibilidade é prevista pelo decreto 2.745/1998, que define as regras de licitações da Petrobras. Portanto, não houve nesse aspecto irregularidade nas contratações. 

O escritório de Santa Cruz atuava em causas trabalhistas das estatais. No ano passado, venceu uma causa estimada em R$ 5 bilhões que seriam pagos como horas extras atrasadas a funcionários da Petrobras embarcados nas plataformas de petróleo da estatal. Com a Petrobras, a empresa de Santa Cruz teve dois contratos firmados no valor total de R$ 2,5 milhões.

E, ressalte-se, aparentemente, advocacia trabalhista é um serviço que poderia ser realizado pelos Procuradores dos órgãos, mas a especificidade e o valor da causa, exigia profissionais de notório saber, pois não é todo escritório de advocacia que derroca em última instância, uma dívida trabalhista convalidada pelas instâncias inferiores, da ordem de 5 bilhões. E esses contratos vigoram desde 2014, sem nenhuma glosa ou apontamento por parte do TCU ou do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e Brasília.

Já o contrato com o Serpro, assinado em 2014 e com vigência até dezembro de 2019, refere-se à defesa da estatal perante o TRT (Tribunal Regional do Trabalho) no Rio e o TST (Tribunal Superior do Trabalho). Ao todo, foram feitos três pagamentos pelo Serpro, no total de R$ 1,3 milhão. No dia 06 de julho passado, Santa Cruz informou que a estatal cancelou o contrato, uma semana após Bolsonaro ter atacado o advogado, cujo pai desapareceu durante a ditadura militar (1964-1985). Ou seja, o que motivou o cancelamento dos contratos não foi o fato de terem sido firmados  por inexigibilidade e sim o ato discricionário do Presidente da República.

Desse modo, o gestor público tem sido incentivado pelos órgãos de controle a sempre    realizar o procedimento licitatório, mesmo que não seja o caminho adequado por não estarem preenchidos os pressupostos necessários para a licitação. Para tanto, o controlador não infere nenhuma irregularidade na conduta  do agente  público  inventar critérios  objetivos  para a  definição,  comparação  e  julgamento  das  propostas quando não existem. Tampouco, extrai qualquer ineficiência  administrativa em operar a máquina pública para uma licitação, que se sabe de antemão, que frustrará seus objetivos por uma inexistência real de disputa e competição, face a ausência de parâmetros  objetivos.

Cumpre ressaltar, que a inexistência de condições objetivas para a comparação entre propostas comumente ocorre nos serviços técnicos especializados. Nessas hipóteses, a intelectualidade e a criatividade humana inerentes a essas atividades caracterizam seus produtos como heterogêneos ou singulares e, portanto, insuscetíveis de comparação por serem bens díspares.

A ausência de parâmetros objetivos de comparação traduz certo grau de subjetividade na decisão de escolha do contratado, contudo é reduzido em razão da obrigatoriedade de sua expertise a induzir confiança ao gestor na satisfação da necessidade estatal.

Nessa toada, Flávio Amaral Garcia e Rodrigo Tostes Mascarenhas: GARCIA, Flávio Amaral; MASCARENHAS, Rodrigo Tostes de Alencar. Contratos públicos, improbidade e o Estado amedrontado (ou “Crime de hermenêutica dos outros é refresco” – . Revista Síntese de Direito Administrativo, v. 12, nº 141, set. 2017, p. 241-252.)

Aqui cabe um alerta específico a propósito do “medo” em celebrar contratações direta por dispensa ou inexigibilidade, ainda que se revelem claramente mais vantajosas ao atendimento do interesse público do que a  realização de licitação formal.

Encerra enorme equívoco forçar a realização da licitação quando não é cabível ou mesmo  quando não se revelar o instrumento mais adequado para a satisfação do interesse público. No setor público ocorre com bastante frequência a preferência por realizar licitação ainda quando evidente sua inviabilidade, seja por proporcionar maior segurança aos gestores frente aos órgãos de controle, seja por conferir aparência de legalidade ao processo de contratação pública. São licitações ilegais, porquanto não encerram uma disputa efetiva e concreta no mercado, eis que abertas por razões estranhas à essência do princípio constitucional meritório da seleção da proposta  mais vantajosa para o atendimento do interesse público.

Ora, nesses casos as licitações públicas têm sido realizadas  apenas  pelo  medo  do  gestor público se tornar  réu  em  ações   civis  públicas  por  improbidade administrativa ou em ações criminais por dispensa irregular de licitação.

O medo da responsabilização pessoal do agente público é potencializado pela Lei Federal nº 8.429/1992, em razão do seu caráter extremamente aberto, que apenas definiu os tipos de improbidade, quais sejam, o enriquecimento ilícito, o prejuízo ao erário e a violação dos princípios da Administração Pública; entretanto sem qualquer elucidação do que seja o ato ímprobo (GARCIA; MASCARENHAS, 2017).

Nesse sentido, a lição de Mauro Roberto Gomes de Mattos: (MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. O limite da improbidade administrativa: Comentários a Lei nº 8.429/92. 5. ed. Rio de janeiro: Forense, 2010, p 27-27; 31).

“Todavia, como a lei em comento possui comandos muito abertos, é necessário que haja uma certa prudência no manejo indiscriminado de ações de improbidade para que não seja enfraquecida e se torne impotente, pelo excesso de sua utilização, para os casos que não comportem o devido enquadramento. Isso porque, o comando legal em questão se preocupou apenas em definir tipos de improbidade, sem, contudo, definir o que venha ser ato ímprobo. Ao deixar de definir o conteúdo jurídico do que venha ser o ato de improbidade administrativa, a Lei nº 8429/92 permitiu ao interprete uma utilização ampla da ação de improbidade, gerando grande equívocos, pois possibilitou que atos administrativos ilegais, instituídos sem má-fé ou sem prejuízo ao ente público fossem confundidos com os tipos previstos na presente lei. (MATTOS, 2010, p. 27-28; 31.)

“Esse cenário de medo tem desencadeado algumas externalidades negativas, não somente na esfera da contratação pública, mas em todas as esferas de atuação da Administração Pública. A primeira delas consiste na paralisia e inércia da atividade administrativa em função exclusivamente do medo do agente público. Os gestores públicos têm se esquivado de prolatar decisões administrativas, por mais corriqueira que seja, em razão do receio da imputação de responsabilidade pessoal, muito embora tenha balizado posicionamento da Advocacia Pública favorável à realização do ato. Outrossim, é cerceado qualquer solução heterodoxa    do  agente  público plasmada para inovar a gestão pública, assim como o gestor é condicionado a preservar uma administração formalista e legalista, em vez de fomentar a busca de soluções eficientes para a satisfação do interesse público”.

Dessa forma, o medo não pode constituir um impedimento à ação administrativa.

Na verdade, o arranjo institucional da Administração Pública deve incentivar a busca dos agentes públicos por eficiência; deve fomentar as soluções heterodoxas e “fora da caixa”  SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. que têm maior benefício-custo. Segundo SUNDFELD:

O gestor tem de ser protegido contra os excessos de fiscalização. Do contrário, morrendo de medo de algum processo, ele cruza os braços e fica esperando a aposentadoria chegar. Nossa máquina  pública funciona cada  vez  menos. O que o direito tem de fazer agora é multiplicar os incentivos para a ação pública, e não ficar criando novos riscos para quem age, incentivando a acomodação e a paralisia. Em suma: mais   sim, menos   não.

O preconceito e o medo não podem extirpar um instrumento de contratação previsto na Constituição e na Lei Federal nº 8.666/1993.

Sebastião Tadeu Ferreira Reis é graduado em Direito pela Universidade São Francisco, de São Pulo, com MBA de Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas e Especialização em Direito Municipal pela UNIS.

1 comentário em “Artigo: A demonização da contratação por inexigibilidade

  1. Roginaldo Rebouças Rocha Responder

    Parabéns Dr. Sebastião, pelo artigo (aula) com clareza apresentando estes dois institutos e suas peculiaridades.

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