Por Sebastião Tadeu Ferreira Reis ( advogado )
Os acordos de delação premiada têm sido uma das principais ferramentas da polícia e do Ministério Público nos processos que investigam casos de corrupção. As últimas três, de executivos da empreiteira Odebrecht, causaram um terremoto no mundo político. Entenda como funciona a lei da delação premiada.
Como o próprio nome já diz, a delação é premiada uma troca entre o delator que conta o que sabe e as autoridades que o premiam com uma possível redução da pena. No âmbito da Lava Jato, os primeiros grandes delatores foram o doleiro Alberto Youssef e o ex-diretor de abastecimento da Petrobras, Paulo Roberto Costa.
As informações e provas apresentadas pelos dois delatores permitiram que a Lava Jato abrisse novas frentes de investigação. A principal delas resultou na prisão de diretores e executivos das maiores empreiteiras do Brasil, que agiam como corruptores e revelou acusações de pagamentos a altas autoridades políticas (presidentes, ex-presidente, governadores, prefeitos, senadores, deputados federais e estaduais e até vereadores) e partidos políticos em contas no Brasil e no exterior.
A delação é um importante instrumento de investigação, mas tem limites que devem ser observados para que não se transforme em um dispositivo de arbítrio, vingança ou injustiça. Como assinala o advogado Pierpaolo Bottini, no Brasil, a colaboração premiada demorou a ganhar terreno, por compreensível resistência no meio jurídico. O país viveu um regime autoritário e o recurso à delação foi um dos instrumentos da repressão para desbaratar grupos de resistência.
A lei nº 12.850/13 fixou regras precisas para a colaboração, detalhando seu processamento e o papel dos participantes. Por isso, para usar e noticiar a colaboração, é necessário conhecer sua natureza e limites. Em primeiro lugar deve, ficar claro que delação premiada não é prova, mas meio de obtenção de prova. São coisas distintas.
A prova é capaz de sustentar uma acusação ou uma condenação. O meio é apenas um instrumento para que as autoridades possam alcançar provas efetivas. As palavras do delator não demonstram fatos. Apenas indicam onde pode ser encontrado o material que comprove o ocorrido.
O colaborador não é isento. É um investigado, confessadamente envolvido na prática delitiva, que sofrerá os efeitos da condenação – ainda que de forma mais branda – e pode ter interesse em fazer prevalecer uma versão distorcida do ocorrido, seja para proteger alguém, seja para obter mais benefícios. No jargão jornalístico, é uma fonte não confiável, cujas informações devem ser checadas antes da publicação.
A delação premiada, tendo em vista a sua natureza jurídica de meio de prova, possui a finalidade de demonstrar a verdade de uma afirmação ou de um fato. Visa, assim, formar a convicção do juiz, para que se obtenha um provimento jurisdicional adequado. O sistema adotado em nosso ordenamento para valoração da prova é o do livre convencimento motivado ou da persuasão racional, em que o juiz não está vinculado a qualquer regra predeterminada de avaliação das provas constantes nos autos, possuindo ampla discricionariedade. Contudo, nenhuma prova possui valor absoluto, apenas relativo, devendo o magistrado fundamentar, obrigatoriamente, em que baseou o seu convencimento.
A lei de combate ao crime organizado, em seu artigo 4º parágrafo 16, estabelece a regra de valoração da delação, versando que nenhuma sentença condenatória poderá ser proferida com fundamento apenas nas declarações do agente colaborador. Percebe-se que essa regra de valoração limita o livre convencimento do magistrado à medida que estabelece a necessidade de obtenção de outros meios de prova para que um fato seja considerado verdadeiro.
Trata-se de uma regra de corroboração, em que o conteúdo da delação deve encontrar concordância em outras provas, que irão confirmar a declaração seja do ponto de vista objetivo, relativo aos fatos narrados, e/ou do ponto de vista subjetivo, as pessoas delatadas.
Posicionamentos Favoráveis
Diante a evolução das sociedades, o Estado precisa de novos meios de persecução penal que sejam mais eficazes, a fim de garantir a paz social. Aqueles favoráveis a utilização da delação acreditam que os efeitos benéficos da medida alcançam tanto o acusado quanto à sociedade, que luta pela impunidade e pela redução da criminalidade. A delação é vista como um aperfeiçoamento dos instrumentos que o Estado possui para alcançar de forma mais rápida e da melhor maneira possível, a verdade processual. Essa aproximação do Estado à verdade mais próxima da real, que facilita o papel de punir na medida exata da reprovabilidade de suas condutas, é um dos argumentos mais repetidos pelos defensores do instituto.
A delação premiada viabiliza condenações que sem o seu auxílio seriam pouco prováveis. Produzir provas em processos envolvendo organizações criminosas, que se aproveitam das novas tecnologias, é algo complexo, difícil, resultando na impossibilidade de perseguir certos crimes gravíssimos. Do ponto de vista social, é melhor dar benefícios a certo número de agentes menos culpados e assim chegar aos principais. Além disso, com a delação é possível o desmantelamento da organização, pois se somente alguns membros são presos eles podem facilmente ser substituídos, dando continuidade às atividades criminosas. O instituto permite extinguir os meios pelos quais a organização desenvolve suas atividades ilícitas e os seus recursos, através da apreensão de bens.
Quanto à conduta do delator ser antiética, os favoráveis ao instituto creem que o agente que se dispõe a colaborar com as investigações assume uma postura diferenciada de respeito aos valores sociais imperantes. Assim agindo, ele mostra uma personalidade mais capaz de se envolver pelos valores das normas jurídicas que imperam no meio social. Contudo, na prática, tal fato não ocorre, pois, só o doleiro Alberto Youssef, já ofereceu três delações premiadas em menos de dez anos. Enfim, acreditam que os fins justificam os meios em nome de um bem jurídico maior, e talvez assim o Estado consiga combater a impunidade que assola a nossa sociedade.
Posicionamentos Contrários
O Estado, com o propósito de alcançar o princípio da verdade real e na ânsia pela busca da paz social, vale-se do instituto da delação premiada, que, apesar de se revelar um importante meio de prova, fere claramente princípios constitucionais. Os detratores do instituto acreditam, inicialmente, que a delação fere o princípio constitucional do contraditório, tendo em vista o sigilo dos acordos. As provas que não são submetidas ao crivo do contraditório, não podem ser usadas para fundamentar uma decisão. Argumenta-se que a delação premiada fere o princípio da isonomia entre os praticantes do delito, afinal, tanto o delator quanto o coautor, cometem o mesmo crime, estão envolvidos no mesmo fato, desenvolvem comportamento igualmente reprovável, mas, em virtude de uma ajuda na elucidação dos fatos criminosos, obtém tratamento penal diverso.
Afronta-se, também, ao princípio da proporcionalidade da pena, conforme o qual uma pena deve ser sempre necessária, adequada e proporcional ao mal praticado pelos transgressores e aos fins visados pelo direito penal. Assim, a minoração da pena ou a sua inaplicação não implicará na prevenção do crime, nem na sua repressão, bem como não retribuirá o mal causado pela infração.
Há, ainda, uma possibilidade de embate com o princípio da indisponibilidade da ação penal. Com efeito, a ação penal, dado o interesse público na pacificação social, não é disponível aos órgãos de persecução penal. Dar espaço a barganha no direito estatal de repressão de infrações penais poderá ensejar na descaracterização do sistema. Além disso, as vítimas perdem o direito de buscar justiça contra colaboradores. A delação pode ser vista como uma forma de suprir a ineficiência do Estado. Criam-se soluções prementes para tentar substituir sua atuação que tem como dever garantir a segurança jurídica frente à violência e à criminalidade organizada. A utilização do instituto poderá frear o desenvolvimento do Estado no que tange as técnicas de persecução penal, uma vez que ele transfere a responsabilidade da investigação ao próprio agente do delito.
Além disso, ensejará a acomodação das autoridades competentes para solucionar o crime, que se manterão absolutamente inertes e cada vez mais se tornarão dependentes da colaboração do agente do fato. Quanto mais o Estado é dotado de capacidade investigativa menos necessita da delação dos criminosos e vice-versa. Ademais, na medida em que se transfere para os próprios participantes no delito a tarefa de produzir provas de autoria e materialidade delitivas, o Estado demonstra pouco a pouco sua falência como ente legitimado para a persecução penal.
Questiona-se, também, se o instituto é eficaz, quando se atenta para a inabilidade do Poder Público para proteger aqueles que colaboram para o desvendamento de fatos criminosos. De fato, o Estado brasileiro é extremamente ineficiente no tocante a garantir segurança às testemunhas no processo penal, o que também ocorrerá com proteção dos réus colaboradores, que, muitas vezes, acabam cumprindo reprimenda em estabelecimentos penais lotados de componentes de organizações criminosas.
Por fim, entende-se que o instituto da delação se contrapõe ao tão caro modelo “garantista”, preocupado com o respeito aos direitos e liberdades individuais, dirigindo-se a um modelo “eficientista”, com enfoque na eficiência e funcionalidade dos aparelhos estatais incumbidos do tratamento penal. Esse argumento se baseia na ideia de que o ordenamento jurídico, mormente o penal, deve priorizar soluções jurídicas que velem pela conduta honesta, leal e proba dos agentes envolvidos, mesmo que, para isso, deva-se sacrificar o interesse público na persecução penal.
Em suma, a delação premiada é importante para a investigação criminal, mas deve ser usada com a devida cautela. Compreender o caráter probatório precário e as fragilidades é um primeiro passo para o manejo responsável do instituto, evitando-se que sua distorção enseje injustiças, tanto na seara jurídica quando sob um prisma jornalístico.