“Uma dor de dente é um problema de dentista; cáries em massa são um problema de política pública”.
A frase, de um amigo que labuta na área da justiça, foi-me dita hoje pela manhã e me fez lembrar do assunto da judicialização da saúde. Em recente matéria publicada aqui no Blog foi relatado que o MP pedira a intervenção do Estado na saúde local em virtude do município não estar supostamente cumprindo com suas obrigações. Na matéria foram citados exemplos em que o Ministério Público teve que intervir para que pacientes fossem transferidos para outros hospitais ou conseguissem medicamentos não disponíveis na rede pública local.
Ontem a noite conversei demoradamente com um administrador de Parauapebas e ele me confidenciou sua preocupação com o assunto. Segundo ele – ressalvando que “ordem judicial não se discute, cumpre-se” – a intervenção da justiça na saúde de Parauapebas vem mais atrapalhando do que ajudando. Isto por que não há por parte do MP um critério para que pacientes entrem na justiça em busca de direitos. O administrador elencou sua preocupação com os advogados, que peticionam ações contra o município buscando que este arque com os deveres que por força da Constituição seriam do Estado.
Saúde é um tema muito difícil de se discutir na justiça, já que envolve pessoas doentes, debilitadas, muitas vezes sem a capacidade de discernir se o seu direito deve ser atendido pelo município, Estado ou pelo Governo Federal. Quem tem um problema de saúde quer a cura, não interessa de onde ela venha. Para os que labutam na justiça é difícil sentenciar que o município não tem a obrigação de fazer o papel do Estado, já que o moribundo não pode aguardar a justiça intimar o Estado na capital e este solucionar o problema. É aquela famosa situação em que todos têm razão, paciente, justiça e gestores da saúde.
Para ter uma ideia, o deslocamento de um paciente de Parauapebas até a capital em ambulância não fica por menos de R$7.500,00 (sete mil e quinhentos Reais) para o município, já que ele precisa ser acompanhado de médico e enfermeiro.
Dentre os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988, o direito à saúde figura entre os mais debatidos nos âmbitos acadêmico, doutrinário e judicial. Após a inserção desse direito, a sociedade brasileira tem se conscientizado que, efetivamente, é a destinatária final da proteção conferida pelo Estado. Com efeito, a CF constitui-se marco histórico da proteção constitucional à saúde, de modo que, antes da sua promulgação, os serviços e ações de saúde eram destinados apenas a determinados grupos, os que poderiam, de alguma forma, contribuir, ficando de fora as pessoas quem não possuíam condições financeiras para custear o seu tratamento de forma particular e os que não contribuíam para a Previdência Social. Não obstante a proteção constitucional ao direito à saúde, a ausência de especificação do objeto desse direito e de definição dos princípios constitucionais relacionados à saúde tem dificultado a concretização desse direito fundamental.
No Art. 196 a Constituição Federal de 1988 reconhece a saúde como direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Para Ingo Sarlet (jurista e magistrado brasileiro, professor titular de direito do Estado da PUC-RS e desembargador do TJ-RS) é o Legislador federal, estadual e municipal, a depender da competência legislativa prevista na própria Constituição, quem irá concretizar o direito à saúde, devendo o Poder Judiciário, quando acionado, interpretar as normas da Constituição e as normas infraconstitucionais que a concretizarem. Com a indefinição do que seria o objeto do direito à saúde, o legislador foi incumbido do dever de elaborar normas em consonância com a Constituição Federal de 1988.
Os gestores da Saúde são o Ministro da Saúde, em nível nacional, o Secretário de Estado da Saúde, em nível regional, e o Secretário Municipal de Saúde. Eles podem dividir funções, mas todos devem ser parceiros para garantir a saúde da população. Confira os compromissos de cada um:
União – É responsabilidade da União coordenar os sistemas de saúde de alta complexidade e de laboratórios públicos. Por meio do Ministério da Saúde, a União planeja e fiscaliza o SUS em todo o País. O MS responde pela metade dos recursos da área; a verba é prevista anualmente no Orçamento Geral da União.
Estados – É papel dos governos estaduais criar suas próprias políticas de saúde e ajudar na execução das políticas nacionais aplicando recursos próprios (mínimo de 12% de sua receita) além dos repassados pela União. Os Estados também repassam verbas aos municípios. Além disso, os estados coordenam sua rede de laboratórios e hemocentros, definem os hospitais de referência e gerenciam os locais de atendimentos complexos da região.
Municípios – É dever do município garantir os serviços de atenção básica à saúde e prestar serviços em sua localidade, com a parceria dos governos estadual e federal. As prefeituras também criam políticas de saúde e colaboram com a aplicação das políticas nacionais e estaduais, aplicando recursos próprios (mínimo de 15% de sua receita) e os repassados pela União e pelo estado. Igualmente os municípios devem organizar e controlar os laboratórios e hemocentros. Os serviços de saúde da cidade também são administrados pelos municípios, mesmo aqueles mais complexos.
Um exemplo de como funciona esse sistema, para que todos entendam e passem a ver com outros olhos os problemas da saúde no município: O senhor X dá entrada no hospital municipal com uma forte dor de cabeça. Ele é atendido e medicado na tentativa de aliviar sua dor. Posteriormente o paciente passa por exames clínicos e laboratoriais para se diagnosticar os motivos da dor. Isso feito, o senhor X foi diagnosticado com câncer na cabeça e deverá ser transferido para um local que atenda a alta complexidade.
Em muitos casos o paciente chega ao hospital municipal já debilitado e tem que ser internado para que aguarde sua transferência para um centro de referência. Acontece que no Estado do Pará, esses centros de referência quase sempre estão lotados, não havendo vagas disponíveis de imediato. Por esse motivo o senhor X fica dois, três, dez dias aguardando. Aí a família do senhor X, impaciente com a demora, resolve procurar o MP e este aciona a justiça, que, na maioria das vezes, manda que o município transfira o paciente em 24 horas sob pena de multa, prisão do administrador, cassação do mandato do gestor… E aí está implantado a judicialização da saúde. Como resolver um problema se o município não tem a gerência nos tratamentos fora do domicílio, se cabe a este apenas referenciar?
O exemplo citado (câncer) é extremo, mas a judicialização se dá por várias outras moléstias, por falta de medicamentos, de exames e de equipamentos para tratar o paciente local. Acredito que os gestores da saúde não deixam faltar medicamentos por que querem. Após a Lei da Transparência, há um mecanismo burocrático que muitas vezes engessa o sistema provocando a atraso na compra e na entrega dos medicamentos. O paciente não quer saber disso. Para ele o gestor é descompromissado quando deixa faltar o medicamento que ele precisa, simples assim! Outro ponto são os equipamentos. Alguns precisam de manutenção periódica e precisam ser deligados para que isso ocorra. Vai que o dia que eu precise desse equipamento seja o bendito dia da manutenção… vou chiar e falar mal do gestor, claro!
Uma das maiores reclamações dos gestores da saúde local é o êxodo de pacientes de municípios vizinhos. Hoje cerca de 70% dos pacientes que procuram a rede pública em Parauapebas são de municípios vizinhos. Segundo um diretor da saúde em Parauapebas, a despesa com o Hospital Geral de Parauapebas consome 47% do orçamento da saúde. Essa despesa aumentou muito depois da implantação da sala de hemodiálise (outra atribuição do Estado). Pode-se dizer que foi uma tremenda irresponsabilidade do prefeito inaugurar a ala de hemodiálise, já que colocou as finanças da saúde local no gargalo. Mas, devemos olhar pelo prisma dos que necessitam passar semanalmente por máquinas de hemodiálise, lembrando que eles se deslocavam 170 km até Marabá para realizar o procedimento. Não seria maior irresponsabilidade manter esses pacientes nessa tortura?
Com todo o respeito que o MP local me merece, mas, pedir que o Estado intervenha na saúde de Parauapebas é desconhecer o real funcionamento da saúde, é desconhecer os reais motivos que levam um paciente a solicitar ajuda da justiça para ter seus direitos preservados. Tirando todo o lado político da situação, quando o assunto é saúde, o governo do Estado mal faz o seu papel, quiçá o do município!
Em relação a essa judicialização da saúde só há uma forma de, com o tempo, contornar a situação para que todos (paciente, justiça, gestores) se sintam confortáveis: a paciência.
Como bem disse Betethoven: “Tenho paciência e penso: todo o mal traz consigo algum bem”.