Estou lendo o romance M. O filho do século, do escritor italiano Antonio (sem acento
circunflexo) Scurati, que narra a história de Mussolini e sua ascensão de agitador político a líder do fascismo, sob a perspectiva do ditador e de seus íntimos, durante o período de 1919 até 1925. A narrativa nos mostra como a história é definida por pessoas, em última análise comuns, com o consentimento – ou ignorância – de pessoas comuns.
Agora voltemos a nossa realidade. Por que um capitão da reserva do Exército e um quadro inexpressivo do baixo clero do Congresso Nacional há 27 anos, ganhou essa eleição?
Primeiro, porque o PT permaneceu 14 anos no poder. Teria ficado até mais se Dilma Rousseff não tivesse sido apeada do poder por um impeachment Mandrake, após ser julgada por suas supostas manobras fiscais ilegais, que de resto, todos os presidentes, governadores e prefeitos desse país fazem há mais de 50 anos.
Ocorre que, nessa década e meia, o partido esteve envolvido em 2 graves escândalos de corrupção: o mensalão, em 2005, ainda no primeiro mandato do ex-presidente Lula, e o propinoduto da Petrobras – Operação Lava Jato, deflagrada em 2014 pela Polícia Federal.
Que me perdoem os historiadores por estar discorrendo numa seara que não é a minha, mas outro fator determinante na queda do PT foi o tal governo de coalizão, com suas trocas de nacos do Estado por tempo de TV em campanha e aprovação de Medidas Provisórias, que atingiu o seu ocaso com a campanha de Dilma em 2014 e que permanece no governo Bolsonaro.
Naquele momento a classe política foi absolutamente devastada com a Lava Jato. Ocorreu uma total destruição dos líderes políticos, crise de credibilidade do Congresso Nacional, partidos e lideranças. E aí, aparece um outsider, que assim se vendeu, e a sociedade aceitou, a despeito dos 27 anos de Câmara Federal em que ele não foi considerado pelo eleitorado membro do clã da “velha política”. Pelo contrário, frequentador dos porões do baixo clero e dono de uma porção de frases de efeito que o tornavam nada além de uma caricatura.
Mas o sujeito exótico foi ganhando cada vez mais holofotes, ainda mais após defender o
impeachment de Dilma na Câmara com homenagens a um torturador. Imprevisível, Jair
Bolsonaro se apresentou como o antissistema.
Este esgotamento com a política tradicional levou os brasileiros a almejar mudanças, na busca pelo novo, pelo desconhecido. Essa vontade de mudar foi decisiva para formar o tsunami pró-Bolsonaro que acabou catapultando-o à Presidência.
Outro problema que pesou contra o PT foram os erros na política econômica de Dilma, que produziram uma inflação preocupante, juros altos e o mais duro e resiliente reflexo da recessão: o desemprego.
Bolsonaro, através de Paulo Guedes, conseguiu endereçar o problema da economia, ao
enfatizar na campanha, sua agenda liberal. Como sabemos, o eleitor brasileiro é “maduro” e muito pragmático, capaz de eleger um doutor de Sorbonne, que foi o FHC, e 4 anos depois um líder sindical que não tinha escolaridade formal – Lula, porque ele julga que essa é a pessoa adequada para prover o melhor para o País naquele momento.
Some-se a isso, o alto índice de criminalidade que o Brasil enfrentava, que aliás, só fez recrudescer depois da eleição do atual presidente. Mas o medo e a insegurança fazem parte da rotina dos brasileiros.
Bolsonaro chegou com um discurso de que não daria margem para a bandidagem, que iria diminuir a idade penal de 18 para 16 anos e que iria liberar o porte e posse de armas de fogo não só para os fazendeiros e produtores rurais, mas para toda a população.
Naquele momento ele consegue se conectar com o eleitor. O desejo por uma solução simples para um problema complexo alimentou a esperança no rigor e na disciplina de um ex-militar, que quer cadeia para criminosos — e não direitos humanos.
E, por fim, o fenômeno do WhatsApp. O Bolsonaro de hoje é certamente uma cria das redes sociais. Sua rede de apoio construída no WhatsApp é uma das mais aguerridas. Bolsonaro inaugurou no Brasil o populismo digital. A campanha dele é sem precedentes no uso populista das plataformas digitais, em especial o WhatsApp. Os eleitores tomaram o lugar do Bolsonaro na campanha digital, principalmente depois do atentado que o candidato sofreu. O esfaqueamento no dia 6 de outubro de 2018, certamente mudou o curso de sua campanha, levando-o para longe dos debates na TV e para perto dos eleitores em lives e sequências de tweets constantes.
Em todas as redes, fake news sobre os adversários e seus apoiadores, denegrindo candidatos e instituições, pagando por pacotes de mensagens contra o PT pelo WhatsApp, tudo isso plantado pela militância pró-Bolsonaro. E surtiu efeito. Em um país de pouca escolaridade e de uma elite que sempre só se preocupou com o seu próprio bolso, Jair Bolsonaro representa a ascensão de uma extrema-direita que aceita regras fora do jogo democrático e nenhuma outra força política, ao centro ou à esquerda, tem hoje forças para se contrapor a esse avanço.
Hoje, quem pode apeá-lo do poder é ele próprio e seu exército de brancaleones composto principalmente pelos seus 3 filhos e por Olavo de Carvalho, Weintraub, Ernesto Araújo, Ricardo Sales e seu passado, com ligações muito fortes com as milícias cariocas.
Até hoje, Bolsonaro e seus aliados continuam plugados no WhatsApp, no Istagram, no YouTube, no Facebook e no Twiter, fazendo um trabalho de call center, com os dedos colados no “caps lock” (gritaria / cola copia) de órgãos da imprensa digital criada ou cooptado pelo seu grupo, reproduzindo manchetes de jornais eletrônicos, tipo Antagonista, Gazeta do Povo, revista digital Cruzoé, enviando mensagens beligerantes, fake news, ofendendo e ameaçando aqueles que ousam contestar as suas verdades absolutas.
Afora isto, Bolsonaro formou um governo cercado de militares e por isso corremos o risco desse governo corroer as instituições democráticas, o pleno funcionamento dos poderes, a plena manifestação de imprensa e os direitos individuais. Ficará sempre pendurado sobre nossas cabeças o temor de que uma lâmina de aço despenque sobre nós, como ocorreu em 1964. Mas hoje existe uma diferença: o grupo militar que assumiu agora o poder não assumiu sozinho, embora tenha um peso enorme.
Esse grupo não tem, como tinha em 1964, interesse em interromper um processo formal democrático e até aqui não tem impedido a liberdade de expressão. Mas estamos vendo o surgimento de manifestações de peso por parte de estudantes, petroleiros, grupos LGBT e servidores públicos, inclusive da Polícia Federal.
Se acontecer aqui o que está em curso no Chile, um caos muito grande na sociedade, a posição dos militares no poder certamente será outra, pois, para os militares, a ordem vem antes da democracia, como afirmou o historiador Boris Fausto. Para eles, democracia tudo bem, mas se estiver comprometendo a ordem, eles não impedirão medidas de exceção.
Se Bolsonaro conhecesse o filósofo grego Aristóteles, que escreveu no ano 290 A.C. que “o homem é o reflexo das suas escolhas”, talvez tivesse se submetido há 38 anos à operação de vasectomia que realizou na quinta-feira da semana passada (30/01/2020). Se assim tivesse feito, certamente teria se livrado de pelo menos 70% dos seus problemas.
Sebastião Tadeu Ferreira Reis é graduado em Direito pela Universidade São Francisco, de São Pulo, com MBA de Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas e Especialização em Direito Municipal pela UNIS.