Artigo: Quando o medo masculino está apenas em um toque.

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Por Wagner Dias Caldeira ( *)

Gabriel Garcia Marquez, em uma de suas principais obras, O Amor nos Tempos do Cólera, faz Fermina Daza, a bela e delicada senhora que protagoniza o romance, lembrar de um fato de sua noite de núpcias com o Dr. Juvenal Urbino. Ele foi o primeiro homem que ela ouvira urinar e som daquele “manancial de cavalo tão potente e investido de tanta autoridade” a fizera temer os estragos vindouros.

Assim como na literatura, na vida que vivemos fora dos livros a masculinidade sempre esteve ligada a expressões de força, potência e autoridade, enquanto que à mulher e à feminilidade foram deixadas a submissão e a passividade. Não nascemos com esses lugares biologicamente reservados, eles são construídos socialmente e vêm mudando muito lentamente e a passos de bêbado.

Ambos, homens e mulheres, têm pago um preço alto pela manutenção dessa configuração social. Mulheres mais, é claro: enclausura no espaço doméstico, violências, exclusividade na criação dos filhos, dependências emocional e financeira.

Os homens, porém, passam por um momento de indisfarçável ameaça aos esteios da masculinidade. Um dos principais perigos nasce e cresce dentro do próprio corpo do homem. O de próstata é o segundo câncer que mais afeta a saúde dos homens – perde apena para os tumores de pele não melanoma. Mas porque esse câncer além de afetar a saúde ameaça junto a masculinidade?

As piadas com o toque retal parecem não ter fim quanto a número e criatividade. Pelo riso a angústia se ameniza, mas o exame de toque continua sendo o meio mais eficaz de detecção do enrijecimento da próstata, a ponto de que 10% dos casos só são diagnosticados no contato da ponta dos dedos com o órgão.

 Os homens falam pouco quanto aos medos que os afligem enquanto os 50 anos de idade vão se avizinhando, mas o extenso anedotário gira todo em torno da perda da masculinidade. Todos nós homens racionalmente sabemos que um simples exame não deveria mudar o que somos, mas parece que a condição de passividade e recepção incomoda por estar identificada com o papel sexual feminino das mulheres e dos homens homossexuais – que na fantasia do hétero é apenas o passivo.

A evolução do tumor faz com que os pilares da masculinidade dominante se esfumacem: o exame, as dores e a fraqueza que impedem o trabalho pesado, a disfunção erétil e até mesmo as alterações no fluxo urinário que aos poucos deixa de ser o “manancial de cavalo” capaz de encher uma garrafa com a precisão de um sniper e passam a assemelhar-se mais um riacho com destino incerto.

O novembro azul pode ser um bom período para falarmos da detecção precoce do câncer de próstata, e é. No entanto, precisamos conversar também sobre o que é ser homem. Pensarmos que não há só um modo de sê-lo. Tornar a masculinidade um substantivo plural. Masculinidades. O que esperamos dos novos homens é que tenham apenas algo em comum: que reconheçam seus medos e passem a cuidar mais de si.

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( * ) – Wagner Dias Caldeira é psicólogo. Atualmente responde pela coordenação municipal de saúde mental e é Referência Técnica em Saúde Mental do 11º Centro Regional de Saúde/SESPA.