Brasília – Eleição após eleição, o que parecia algum problema relacionado à metodologia da ciência estatística, acabou se revelando, talvez, a maior ameaça à democracia do Brasil. As empresas, em sua maioria, que oferecem a cada ciclo eleitoral de dois anos, seus serviços de levantamento de tendência de votos do eleitorado, estão sendo acusadas de um grave crime que ameaça diretamente a democracia nacional: a manipulação dos números.
Em reação ao gravíssimo problema, um grupo de deputados federais e de senadores está colhendo assinaturas para a abertura, nas duas Casas do Legislativo Federal, de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), para investigar os institutos de pesquisa. O Regimento Interno Conjunto do Congresso Nacional permite a criação de CPI Mista, com participação de senadores e de deputados. Ainda não se sabe se é isso que vai ser acordado.
O senador Marcos do Val (Podemos-ES) colheu, desde segunda-feira (3), um dia depois das eleições, 12 assinaturas de senadores para o pedido de abertura da CPI na Casa revisora. A intenção, segundo o documento, é “aferir as causas das expressivas discrepâncias” entre os resultados apresentados e o resultado das eleições no último domingo (2).
“A eleição de 2 de outubro de 2022 novamente comprovou um fenômeno que vem sendo observado em eleições recentes, qual seja, a expressiva discrepância entre a intenção de voto aferida e os resultados efetivamente apurados”, disse o senador no requerimento. No texto, o senador destaca a necessidade de conhecer os critérios técnicos e científicos das pesquisas.
Consultado, Marcos do Val confirmou que sua eleição em 2018 foi vítima da atuação dessas empresas de pesquisa eleitoral. “Eu mesmo fui vítima na minha campanha ao Senado em 2018. As pesquisas quase me derrotaram e não o meu opositor nas urnas”.
Marcos do Val citou, no texto protocolado na Mesa Diretora do Senado para a abertura da CPI, “expressivos e inegáveis impactos dessas pesquisas na formação do cenário político-eleitoral […] e na formação da decisão do voto pelo eleitor”; a “possibilidade, convincente, de preferências de algumas instituições por determinados candidatos”; e a variação de resultados entre institutos.
Segundo do Val, assinaram o documento o próprio senador e os colegas Mecias de Jesus (Republicanos), Eduardo Girão (Podemos), Telmário Mota (PROS), Marcos Rogério (PL), Carlos Portinho (PL), Jorge Kajuru (Podemos), Plínio Valério (PSDB), Lucas Barreto (PSD), Eliane Nogueira (PP), Guaracy Silveira (PP) e Zequinha Marinho (PL).
Eduardo Bolsonaro também vai propor CPI
Reeleito no domingo (2), o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) disse que vai começar a coletar assinaturas ainda nesta semana para criar uma CPI dos institutos de pesquisa.
“Conversei com os deputados Carlos Jordy e Paulo Martins e ainda nesta semana começaremos a coletar assinaturas para a CPI dos Institutos de Pesquisa, tendo como fato determinado a discrepância não só nas intenções de votos para presidente, mas também para outros cargos”, publicou ele nas redes sociais.
Jordy (PL-RJ) também foi reeleito. Já Martins (PL-PR) foi derrotado na disputa ao Senado pelo Paraná pelo ex-ministro Sergio Moro (União Brasil) e diz que as pesquisas divulgadas na véspera da eleição o prejudicaram de maneira “incalculável”.
A proposta do filho do presidente está alinhada à ideia do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), ao anunciar ontem que vai apresentar um projeto de lei para criminalizar o erro nas pesquisas.
Nas últimas pesquisas presidenciais do Datafolha, do Ipec e da Quaest até o sábado, dia 1º, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tinha de 49% a 51% das intenções de votos válidos, ou seja, excluindo brancos e nulos. Pela margem de erro, que é de dois pontos percentuais nos três estudos, o petista podia ter de 47% a 53% nas urnas no domingo. Lula obteve 48,43%, portanto dentro da margem de erro.
O desempenho do presidente Jair Bolsonaro (PL), porém, não foi previsto pelas sondagens. Os últimos levantamentos dos três institutos variavam de 36% e 39% das intenções, mas o atual presidente obteve 43,2% dos votos.
Projeto de lei
O Líder do governo na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros (PP-PR), reeleito no domingo (2), não esperou a criação da CPI na Casa e disse que vai apresentar um projeto de lei para punir os institutos de pesquisas que divulgarem levantamentos cujos resultados não confiram com o que for computado nas urnas além da margem de erro.
“Eu vou apresentar um projeto de lei já amanhã [terça-feira, 4], tornando crime pesquisas que publicadas não confiram com a urna além da margem de erro. Se diz que é uma técnica, é uma fotografia, então, a fotografia tem que ser verdadeira. Não tem cabimento uma pesquisa influenciando o eleitor porque, infelizmente, no Brasil, tem eleitor que não quer perder o voto”, disse o líder.
Editorial de um jornal de grande audiência digital no estado do deputado Ricardo Barros, destacou que, da mesma forma ocorreu nas eleições de 2018, o desempenho eleitoral do presidente Jair Bolsonaro (PL), candidato à reeleição, foi subestimado pelos principais institutos de pesquisa.
“Enquanto a votação de Lula pode ser considerada dentro da margem de erro das pesquisas, ou muito próxima dela, várias sondagens de véspera colocavam o atual presidente com menos de 40%. Este fato, aliás, chama a atenção para um “padrão” nos erros de 2018 e 2022: os candidatos cujas votações são bem superiores ao projetado pelas pesquisas costumam ser conservadores, de centro-direita ou direita; já aqueles com intenções de voto “infladas” nas pesquisas são seus oponentes de centro-esquerda ou esquerda, como ocorreu agora com os paulistas Haddad e França em desfavor do candidato de direita Tarcísio Freitas, que acabou ganhando o 1º turno para o governo de São Paulo”, destacou o deputado.
Lira também questionou pesquisas
Em 22 de setembro, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), “sentiu na pele” a manipulação dessas empresas, geralmente contratadas por Bancos ou por Redes de Televisão. Erradas, as pesquisas em Alagoas não afirmaram que Lira seria o deputado federal mais votado no estado o que acabou acontecendo, elegendo outros três candidatos de seu partido.
Lira também havia sugerido que houvesse algum tipo de punição para os institutos de pesquisas eleitorais que tiverem ampla margem de erro no resultado das eleições. Para o presidente da Câmara dos Deputados, nada justifica a divulgação de números tão divergentes das empresas. Ele afirmou ainda que algumas delas prestam um desserviço e que não se pode permitir que ocorram manipulações.
“Não podemos permitir que haja manipulações de resultados em pesquisas eleitorais. Isso fere a democracia. Nada justifica resultados tão divergentes dos institutos de pesquisas. Alguém está errando ou prestando um desserviço. Urge estabelecer medidas legais que punam os institutos que erram demasiado ou intencionalmente para prejudicar qualquer candidatura”, publicou Lira em suas redes sociais.
Poucas horas depois, o parlamentar voltou a publicar sobre o tema, afirmando que não fez acusações contra nenhum instituto.
Incompetência ou deliberada má fe?
Entidades que realizam pesquisas eleitorais no Brasil são obrigadas, por lei, a registrar na Justiça Eleitoral como cada levantamento foi produzido, com o objetivo de torná-lo de conhecimento público. Os institutos e as empresas devem divulgar informações, por exemplo, sobre o processo de amostragem e a metodologia de entrevista. Essa publicidade, entretanto, fica apenas na superfície, o que dificulta avaliação da qualidade dos métodos utilizados e pode travar a adoção de novos modelos.
O artigo 33 da Lei nº 9.504/1997 determina às organizações que realizarem pesquisas sobre eleições ou candidatos a divulgação de um mínimo de informações. Os institutos esclarecem dados sobre o tamanho da amostra, a pesquisa e a estratificação, mas “se restringem ao mínimo do mínimo”, criticou Raphael Nishimura, diretor de amostragem do Survey Research Center, da Universidade de Michigan, durante o debate recente no Portal Jota.
O especialista exemplificou que há diversas maneiras de selecionar uma amostra. Na hipótese de uma entrevista por telefone, há a possibilidade manter um cadastro de número ou uma metodologia que os gere aleatoriamente. “Cada uma dessas escolhas metodológicas vai ter impacto na qualidade das estimativas. A maioria dos institutos, do que eu vejo pelo menos quando eles reportam a metodologia, não explicam como que essa amostra é selecionada por telefone. Presencialmente, eles explicam um pouco mais, mas ainda assim acho que há um pouco de espaço para melhorias na descrição metodológica.”
Segundo Nishimura, a transparência é dos pontos mais importantes para comparar a qualidade dos métodos utilizados no país em relação aos empregados nos Estados Unidos — um dos países que mais produz pesquisas eleitorais do mundo.
Uma das diferenças citadas entre a realização de levantamentos nos dois países foi a adoção de modelos para cálculos de estimativas. Os Estados Unidos possuem um modelo eleitoral no qual o voto não é obrigatório. Por isso, os pesquisadores desenvolveram modelos que tentam predizer quem são os respondentes que, de fato, irão votar nas eleições. Nas palavras de Neale El-Dash, estatístico e diretor metodológico no PollingData, não existe uma estratégia óbvia de fazer isso, porque dependerá do que a pessoa vai responder, mas é possível inferir indiretamente. Perguntas sobre o interesse na eleição, se ela votou em pleitos passados ou sobre a preferência em algum partido, podem ser caminhos para antecipar essa informação.
No segundo turno das eleições municipais de 2020, o Brasil registrou um recorde de abstenções. Quase 30% dos eleitores aptos a votar não compareceram às urnas, mesmo com o voto obrigatório. No ano de 2018, durante as últimas eleições para presidente, o percentual chegou a cerca de 20%. Essas margens dariam ao país a oportunidade de aplicar modelos de previsão de quais respondentes das pesquisas sairiam de casa no dia da eleição. Contudo, El-Dash vê um problema. “Acho que hoje em dia seria difícil publicar isso sem ter um ruído enorme, porque vão falar: ‘Além de você pegar a pesquisa, você vai lá e tira fora os caras. Não quer [colocá-los] para dar o resultado que você tá interessado’. Acho que a gente não tem maturidade metodológica nesse momento para fazer isso.”
Na análise de Daniel Marcelino, cientista de dados no JOTA, é comum a atribuição de um valor maior a pesquisas realizadas presencialmente, em detrimento das feitas online ou via telefone. Isso nem sempre está correto e é preciso destrinchar no caso a caso. De acordo com o especialista, cada escolha metodológica apresenta uma série de problemas e benefícios. “Em tese, uma pesquisa online pode ser o modo de coleta que mais vai possibilitar uma amostra representativa, por conta de que ela está quase que onipresente. Todo mundo, você vai acessar a pessoa. Não necessariamente agora neste momento, mas talvez em cinco, 10 anos, seja o método, o modo, que tenha maiores possibilidades ao segmento de pesquisa, que, no Brasil, é o menos utilizado, especialmente em campanhas eleitorais.”
Nishimura, do Survey Research Center, ponderou que pesquisas eleitorais estão sujeitas a erro. Eles podem ser de amostra, de não resposta, de coleta ou de seleção. Apesar disso, são erros possíveis de ser previstos e controlados. “Nosso objetivo, da gente que trabalha com pesquisa, não é ter uma pesquisa cem por cento perfeita. Se você pensar dessa forma, as pessoas realmente vão ser inúteis.”
Segundo ele, erros são inerentes ao processo e sempre ocorrerão em pesquisas. O objetivo das entidades é tentar minimizá-los, conforme as restrições de custos e de tempo. Nesse quesito, “institutos têm feito o melhor que eles podem”.
Confira o webinar “Erros em pesquisas eleitorais e a eleição de 2022: no que prestar atenção” aqui
Ao longo da semana o Blog do Zé Dudu fará análises mais aprofundadas do resultado dessas eleições históricas em resultados e recados enfáticos dos eleitores.
Reportagem: Val-André Mutran – Correspondente do Blog do Zé Dudu em Brasília.