Brasília – Por que um cantor famoso nacionalmente e seu empresário, Matheus Possebon, ambos ricos e que estavam ultimando os preparativos para uma turnê nacional com os companheiros de sua antiga banda – o Só Pra Contrariar (SPC) –, se envolveram num cabeludo esquema de garimpo ilegal em terras indígenas na Amazônia? Dinheiro fácil, ganância, dívidas gigantescas? A Polícia Federal quer as respostas para essas e outras perguntas, após prender a dupla na segunda-feira (4), ao desembarcarem de um dos cruzeiros temáticos do artista, no Porto de Santos, litoral de São Paulo.
O pagodeiro chegou a ser levado para delegacia, mas acabou liberado após prestar depoimento. Ambos são investigados por suposto envolvimento em um esquema ilegal de garimpo nas terras indígenas Yanomami, que teria movimentado cerca de R$ 250 milhões. A PF deflagrou a operação “Disco de Ouro”, na manhã da última segunda-feira. Matheus Possebon estaria ligado ao núcleo financeiro dos crimes, enquanto Alexandre Pires teria recebido ao menos R$ 1 milhão de uma mineradora atualmente sob investigação.
Possebon é um dos executivos da Opus Entretenimento, que organiza shows e gerencia casas de eventos e a carreira de grandes artistas e grupos musicais brasileiros, como Daniel, Seu Jorge, Ana Carolina, Jota Quest, Roupa Nova, Munhoz e Mariano, entre outros. Após a operação da PF nesta segunda, Alexandre Pires tirou o nome do empresário das suas redes sociais.
O advogado Fábio Tofic Simantob, responsável pela defesa de Possebon, classificou a prisão como ‘’uma violência’’. “Foi decretada por conta de uma única transação financeira com uma empresa que Matheus não mantém qualquer relação comercial. Mais grave ainda, a prisão se deu sem que Matheus pudesse ao menos esclarecer a transação. A defesa, porém, está certa de que esta violência será prontamente desfeita, e que Matheus poderá, em liberdade, comprovar que nada tem a ver com a investigação,” diz a nota.
Operação
A PF cumpriu na segunda dois mandados de prisão preventiva – um deles contra Possebon – e seis de busca e apreensão, expedidos pela 4ª Vara Federal da Seção Judiciária de Roraima. As ações foram realizadas em Boa Vista (RR), Mucajaí (RR), São Paulo, Santos (SP), Santarém (PA), Uberlândia (MG) e Itapema (SC). A Justiça também determinou o sequestro de mais de R$ 130 milhões dos suspeitos.
Alexandre Pires nasceu e tem casa em Uberlândia (MG), mas é dono de vários outros imóveis e mora em uma mansão avaliada em R$ 16 milhões, na região da Granja Viana, em São Paulo. A propriedade de dois andares foi posta à venda no fim do último ano. Tem um terreno de 6.902 m² e conta com atrativos como piscina, sauna, estacionamento para 200 veículos, duas cozinhas industriais, ofurô e jardim de inverno.
O cantor também tem um imóvel em Itapema, em Santa Catarina, estimado em R$ 4 milhões, além de apartamento no condomínio Yachthouse Residence Club, em Balneário Camboriú (SC), no edifício considerado o mais alto do Brasil, com 81 andares e 275 metros de altura, e cujo dono da cobertura quadriplex é Neymar.
A operação de segunda-feira é um desdobramento de uma ação ocorrida em janeiro de 2022. A PF apura um esquema de financiamento e logística relacionado a atividades ilegais de garimpo em terras indígenas. Matheus Possebon, outros empresários e garimpeiros são acusados de movimentarem R$ 250 milhões em transações com cassiterita, apelidado de ‘’ouro negro’’ no mercado clandestino. O minério é usado para a produção de tintas, plásticos e fungicida, e tem sido extraído ilegalmente em território Yanomami e outras localidades da Amazônia.
Na ocasião do início da operação, foram apreendidas 30 toneladas de cassiterita extraídas da terra indígena Yanomami, que estariam armazenadas na sede de uma empresa investigada e que seriam contrabandeadas para o exterior.
O inquérito policial sugere que o esquema estava direcionado para a “lavagem” de cassiterita retirada ilegalmente do território indígena. O minério seria declarado como proveniente de um garimpo regular no Rio Tapajós, em Itaituba (PA), e alegadamente transportado para Roraima para processamento. “As investigações apontam que tal dinâmica ocorreria apenas no papel, já que o minério seria originário do próprio estado de Roraima,” diz a PF em nota.
Além disso, foram identificadas transações financeiras que vinculam toda a cadeia produtiva do esquema, incluindo a participação de pilotos de aeronaves, postos de combustíveis, lojas de máquinas e equipamentos para mineração, bem como a presença de “laranjas” para encobrir movimentações fraudulentas.
Esquemão
Quando se pensa em garimpo ilegal no Brasil, extração de ouro é a primeira coisa a vir à mente. Mas a busca dos garimpeiros ilegais por outro material, a cassiterita, tem se tornado cada vez maior, sobretudo em Roraima, na vulnerável Terra Indígena Yanomami, onde já há anos várias dessas quadrilhas têm conseguido obter em abundância a rocha, que é minerada e exportada ilegalmente com uso de notas frias.
O que é a cassiterita?
A cassiterita é a principal fonte para se obter o estanho, metal nobre que é usado na fabricação de smartphones e tablets, por exemplo, que contam com o elemento na composição do material da tela, e internamente nas placas de circuitos eletrônicos. O estanho compõe ainda o revestimento interno de enlatados, é parte na fabricação de fungicidas e usado na indústria para formar ligas, como bronze, latão e soldas. A tonelada no mercado internacional já superou os US$ 40 mil – quase R$ 200 mil.
A demanda por essa matéria-prima explodiu durante a pandemia, puxada pelo aumento na procura por aparelhos eletrônicos, como computadores e celulares, o que fez com que o valor também disparasse. Isso, é claro, despertou a atenção dos garimpeiros ilegais que já manejam a cassiterita desde os anos 1970.
No Pará, em Conceição do Araguaia e em outros municípios do extremo sul do estado, são lendárias as minas onde ocorrem o mineral.
Deparado com a imensa demanda, as apreensões logo dispararam, atesta a PF. De acordo com relatório do Ministério Público Federal, de janeiro de 2021 até início de maio de 2022, foram apreendidas mais de 200 toneladas de cassiterita só em Roraima. Em janeiro deste ano, uma única ação da Polícia Federal apreendeu 30 toneladas do minério. Em março, outra operação da PF, também em Território Yanomami, apreendeu outras 27 toneladas. No último dia 1º, agentes da Polícia Rodoviária Federal apreenderam 7,5 toneladas em Boa Vista (RR). A Polícia Rodoviária Federal (PRF) estima que mais de 400 toneladas tenham sido apreendidas pela instituição nos últimos três anos.
No ofício do MPF que acabou garantindo, em maio deste ano, que todo a cassiterita apreendida pela PF fosse leiloada e abastecesse financeiramente as ações de combate ao garimpo ilegal, os procuradores destacaram que a Secretaria de Finanças do Estado de Rondônia (estado para onde os garimpeiros mais costumam enviar a cassiterita após a extração, antes da exportação) avaliava o quilograma do minério em R$ 120 por quilo, bem mais caro que o ouro. ‘’O quantitativo de minério apreendido é tão expressivo que as entidades públicas têm enfrentado dificuldades para armazená-lo em seus pátios, sujeitando-os ao risco de furto e degradação ambiental’’, diz o documento.
Embora o garimpo seja ilegal, a exportação de minérios de Roraima, que em tese não tem uma única mina legalmente, teve uma escalada. Até 2020, o ouro Yanomami chegava a representar na balança comercial do estado quase 20% das exportações. No ano passado, em meio às operações policiais, o ouro sumiu da balança e deu lugar à cassiterita, cuja exportação somou cerca de 700 toneladas no total, uma aparente contradição.
De acordo com a PRF, as apreensões de cassiterita são mais frequentes no Norte, onde estão localizadas as maiores reservas do minério: Amazonas, Rondônia e Roraima. Mas a rota do minério alcança outros estados mais afastados, como no caso de uma de 20 toneladas este ano, em São Paulo. Desde 2020, 664 pessoas foram detidas pela PRF em ocorrências envolvendo o mineral.
Por Val-André Mutran – de Brasília