Dois anjinhos
Por Frede Silveira
Agora estava eu diante desse menino, criança ainda. Mas foi o que mais quis durante todo o tempo em que não o conhecia pessoalmente. Esperei pacientemente cada santo dia por aquele instante. De repente, cara a cara com aquele esbirro de gente me vi sem saber o que fazer.
Foram os cem dias mais longos da minha já longa vida. Desde o dia do acontecimento até o dia em que me deparei com aquela aparência angelical, loira, alhos verdes, azuis, não sei bem. Só sei que anjos são sempre bonitos. Como aquela criança a minha frente.
Fiz, dia após dia, os mais cruéis planos para aquele que em minha imaginação assemelhava-se a satã. Embora, reconheço, não me lembre de já ter visto o capeta pessoalmente. Só em gravuras e em relatos pessoais de quem jura que já o viu.
A favor de minha consciência é de se reconhecer que comumente a ninguém seria lícito imaginar que um bandido atroz possa se parecer com um anjo. Não, é claro que não! Mas, a bem da intimidade que se possa ter com a realidade, e isso é mais claro ainda quanto mais instruída for a pessoa, não se concede imaginações benevolentes a maldades.
A maldade é sempre feia, horrível mesmo. Ao menos na mente de pessoas do bem. Não haveria muito sentido numa fada má a beleza de uma Angelina Jolie. Ou de uma Vera Fischer. Em que pese o respeitável conceito politicamente correto sobre beleza que abstrai o físico e sobrepõe o espiritual, o velho poetinha Vinícius de Moraes tinha lá suas razões.
E era exatamente assim que sempre imaginava aquela criaturinha posta a minha vista. Confesso que senti um certo sentimento contraditório, não sabendo claramente de que tipo, quando deitei a visão sobre aquele pedaço de gente. Se pudesse daria o resto que havia me sobrado, se é que sobrado havia algo, para ter diante de mim um Frankenstein, de Mary Shelley, ou um Quasimodo, de Victor Hugo.
– Quantos anos você tem?
– Quem? Eu?
– Sim!
– Por que tu queres saber? Tu és polícia?
– Não.
– Tu tem cara de polícia, tio.
– Mas não sou.
– Então, o que tu és?
– Sou pai da Anita.
– Que Anita, tio?
– Você não lê jornal, moleque?
– Não sei ler, tio.
– Não vê televisão?
– Onde eu moro não tem tevê, tio.
– Então você não sabe quem é Anita? Nunca conheceu uma Anita?
– Não, tio, juro que não.
– Quantos anos tem você?
– Treze, tio. Hoje é o meu aniversário. Treze anos, tio.
– Eu não sou seu tio.
Tive que conter várias vezes o indomável ímpeto de esganar aquela minúscula figura a minha frente em diversas ocasiões. Aquele seu sorriso cinicamente irônico, arrogante às vezes, contrastava com seu biotipo raquítico, inocente. Não, com certeza me trouxeram a pessoa errada.
Peguei o celular e liguei mais uma vez: – Tem certeza que é este mesmo? – Absoluta, responderam do outro lado.
O lugar em que nos encontrávamos era ermo, muito distante de qualquer aglomerado humano. Foi cuidadosamente escolhido a meu pedido pelo pessoal encarregado de encontrar e trazer-me aquele menino. Fora as despesas com almoços e jantares não computados com a turma encarregada do serviço, que por uma questão de sobrevivência aqui declino de nomear, desembolsei uma pequena fortuna para ter aquele momento na minha vida. E não seria a aparência física do anjinho que iria me demover do meu vaticínio. Embora soubesse que Anita, minha pobre filhinha, com apenas cinco felizes primaveras embutidas na mais encantadora figura humana que conheci, não aprovaria o que eu tinha de fazer.
Com a mais terrível lembrança que teimava em não sair da minha mente, minha querida Nitinha ensangüentada, atirada num matagal às margens de uma estrada de chão batido, estuprada, esganada, o mesmo lugar onde estávamos agora, o anjinho e eu, fiz a única coisa que deveria fazer naquele momento.
Foi um só tiro entre os olhos azuis…verdes, sei lá, daquele anjo do mau.
– Tio, eu estou morrendo?
– Eu não sou seu tio, já lhe falei.
– Tá bem…tio…