Aborto – O direito que a mulher tem de não ser só um útero a serviço da sociedade
A primeira questão a ser discutida nesse artigo é que só mulheres abortam, logo, homens não têm o direito de participar do debate sobre a criminalização ou não do aborto. São as experiências das mulheres que devem ser reconhecidas na discussão sobre a construção do direito ao aborto como questão social e de autonomia das mulheres.
Ter direito ao aborto é ter o direito de decidir sobre o seu destino e projetos de vida. Ao se deparar com uma gravidez indesejada, a reflexão que praticamente toda mulher faz considera não apenas os planos que têm para sua vida, como também as condições efetivas – objetivas ou subjetivas – de levar a gestação adiante. Suas decisões estão sempre condicionadas pelas possibilidades, as quais também são atravessadas por dinâmicas capitalistas, racistas e heteropatriarcais, que impõem ritmos, atropelam expectativas e enfraquecem a possibilidade da mulher controlar sua vida e seus desejos.
Todos os dias, mulheres tomam uma decisão sobre levar adiante ou abortar uma gravidez. Essa decisão acontece no espaço doméstico ou privado e não é livre de conflitos e tensões. Toda mulher conhece as responsabilidades que ter filhos implica, responsabilidades que não são as mesmas para os homens.
O aborto é uma prática frequente e persistente no mundo todo. Ele é realizado por mulheres de todas as classes sociais, grupos raciais, níveis educacionais e religiões –sejam mães ou não, vivam relações estáveis ou não.
Para compreendermos a realidade sobre o aborto é fundamental debruçarmos sobre os dados referentes à saúde das mulheres. Porém, por ser uma prática clandestina, as informações existentes podem ser imprecisas, com números provavelmente inferiores à realidade, já que há uma subnotificação do aborto. Os dados compilados aqui têm como fonte principal o Ministério da Saúde, a partir do registro de vigilância de doenças e agravos não transmissíveis. Eles apontam para um fato evidente: o aborto inseguro se transformou em um grande problema de saúde pública, afetando, sobretudo, as mulheres mais pobres e negras.
Outra fonte utilizada aqui é a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA 2016), que combinou duas técnicas de sondagem: a de urna, em um questionário com perguntas fechadas, preenchido por mulheres entre 18 e 39 anos, e a de questionários preenchidos por entrevistadoras em torno de questões sociais e demográficas. A PNA foi realizada pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis) e a Universidade de Brasília e, em 2016, ouviu um total de 2.002 mulheres em cidades do Brasil urbano. Finalmente, também utilizo como referência os dados da pesquisa “As leis de aborto no mundo” (The World’s Abortion Laws, no inglês), de 2018, realizada pelo Centro para os Direitos Reprodutivos (Center for Reproductive Rights).
Segundo o Ministério da Saúde, a cada ano são realizados entre 700 mil e 1 milhão de abortos no Brasil. O aborto clandestino é feito pelas mulheres independente da classe, mas as complicações e morte atingem as mulheres mais vulneráveis – pobres e negras – sem acesso ao procedimento seguro. A realização do aborto em condições inseguras e suas sequelas são a quarta causa de mortalidade materna no Brasil. Para cada morte materna por aborto, há pelo menos 30 casos de complicações graves: 250 mil hospitalizações no ano – 15 mil complicações; 5 mil complicações de quase morte e 203 mortes, quase uma a cada 2 dias.
Segundo o PNA 2016, 1 em cada 5 mulheres até os 40 anos de idade já realizou pelo menos um aborto. Cerca de metade das mulheres que realizam um aborto em casa (48%) são internadas para finalizar o procedimento. Não é o processo do aborto em si que provoca a morte das mulheres, mas os métodos e condições inseguras e a falta de atendimento, impostos pela clandestinidade.
Em visões religiosas, o sexo tem sido tratado a partir da finalidade de procriar; a sexualidade visando ao prazer é associada com o pecado ou com a imoralidade. O prazer é visto em conflito com o dever da reprodução, imposto às mulheres. O aborto demonstraria uma irresponsabilidade com esse papel, além de negar a função de procriar e afirmar o sexo pelo prazer. Logo, o aborto é condenado na maioria das religiões.
Para a Igreja Católica e todas as demais, a condenação da interrupção voluntária da gravidez funda-se numa proposição de fé, segundo a qual a vida humana tem caráter sagrado por ser um dom divino. Paulo VI, citando Pio XII, não deixa dúvidas: “Cada ser humano, também a criança no ventre materno, recebe o direito de vida imediatamente de Deus, não dos pais, nem de qualquer sociedade ou autoridade humana”.
Permeadas pela ideologia patriarcal e por visões religiosas em seus matizes mais ou menos fundamentalistas, as instituições fazem valer tais ideais como verdade ao afirmar que o aborto corresponderia moralmente a um assassinato. Isso ocorre ao equivaler embriões fecundados a cidadãos com direitos – inclusive com mais direitos do que as mulheres.
A Constituição proíbe a cobrança de impostos para “templos de qualquer culto”. A interferência do Vaticano e das igrejas evangélicas na votação sobre o aborto provocou o surgimento de diversos grupos civis que pedem o fim dos subsídios estatais às Igrejas Católicas e evangélicas. Façamos o seguinte: “Respeitamos suas crenças… Mas paguem você por elas”.
O Estado laico deve promover políticas públicas e não valores religiosos. A definição de quando começa a vida varia de acordo com cada crença. A legalização abre portas a uma política pública responsável que pensa nos direitos de todas as pessoas gestantes, independentemente de sua religião.
Finalmente, o recurso da ciência leva em consideração o desenvolvimento da consciência humana como critério para o estabelecimento da existência ou não de uma pessoa. Seguindo Häring, lemos em Melo:
“Desde Teilhard de Chardin se reconhece que a hominização ocorre pela emergência da consciência humana. (…) Mas não há possibilidade de consciência sem vida cerebral. Em outras palavras, a hominização de cada ser humano supõe a ‘emergência’ ou o surgimento de sua consciência”.
(Melo, G. “Problemática religiosa de la mujer que aborta”. Encuentro de investigadores sobre aborto inducido en América Latina Y el Caribe, Santafé de Bogotá, Universidad Externado de Colombia. 1994.)
Ora, o substrato orgânico indispensável para que possa existir consciência é o cérebro. A célula geradora do córtex cerebral inicia seu desenvolvimento no 15º dia após a concepção e somente em torno da 8ª semana está suficientemente desenvolvido para que se possa detectar a atividade cerebral. Para mostrar a importância da consciência no estabelecimento da pessoa, Melo propõe a hipótese de que se transplantassem todos os órgãos de um indivíduo para um outro corpo: não haveria, nesse caso, um transplante de pessoa. Mas se se chegasse a transplantar o sistema cerebral de um corpo a outro, ocorreria certamente um transplante de pessoa.
Todas as pessoas têm o direito de decidir sobre seu corpo, sua liberdade e seu futuro. A criminalização do aborto é a mutilação da cidadania, ao negar o direito das mulheres ao seu próprio corpo. E vou além, a proposta da legalização deve vir acompanhada de uma política integral que pense a educação sexual para decidir com consciência, métodos contraceptivos acessíveis para não engravidar e aborto legal para não morrer.
O aborto como procedimento médico, assistido adequadamente, não representa riscos à saúde; pode inclusive ser a porta de acesso à informação para evitar um próximo episódio. A marginalização gera riscos à integridade física e moral das mulheres. Em países europeus onde a prática é legal, o número de abortos diminuiu ao longo dos últimos 20 anos e a mortalidade materna deixou de ser um problema de primeira ordem da saúde pública. No Uruguai, a taxa de mortes vinculadas ao aborto é a mais baixa da América Latina e Caribe.
O controle da sexualidade das mulheres se vincula à imposição da heterossexualidade como norma, ao modelo de família centrado no poder masculino, à divisão sexual do trabalho e à maternidade como referência do ser mulher. Esse modelo de sexualidade normatiza e hierarquiza e não abarca o conjunto das experiências das mulheres – e nem a dos homens. A naturalização também marca a visão hegemônica sobre a sexualidade, como se houvesse uma essência determinada biologicamente. Aos homens se atribui uma sexualidade baseada na força, na virilidade e na ideia de que eles teriam um desejo insaciável, enquanto para as mulheres a sexualidade seria marcada pela passividade, vinculada mais à reprodução que ao prazer.
Precisamos descriminalizar o aborto. Façamo-lo logo.
Sebastião Tadeu Ferreira Reis