Sexo & Poder – Prostituição
“Tudo nesse mundo é sobre sexo, exceto sexo. Sexo é sobre poder”. A frase do célebre escritor britânico Oscar Wilde serve como perfeito epítome para tratar desse assunto. Nós mortais somos condenados a expiar a culpa do pecado original de que somos portadores, em virtude dos nossos impulsos “pecaminosos” de prazer. A Santa Madre Igreja nos impõe essa cruz: a maçã proibida simboliza os prazeres “impuros” do erotismo que assolam a humanidade, e fazem-na cometer atos impróprios e prejudiciais aos seus semelhantes. Portanto, os homens devem sentir-se culpados quando tomados por tais sentimentos, e procurar exorcizá-los. Dessa forma, o sentimento de culpa tem sido um dos principais guardiões da vida em sociedade, sempre atazanando o prazer onde quer que ele surja. Desse sentimento teriam germinado a agressividade, a violência sexual, as taras e outros tabus.
Aí vem o psicanalista Reich e desconstrói essa afirmativa, dizendo que a maioria dos instintos socialmente perturbadores, como a agressividade, as taras, a violência sexual, não passam de consequências da repressão sexual imposta aos indivíduos pela sociedade. A moral repressiva das sociedades autoritárias deforma os instintos sexuais, que acabam se exteriorizando agressivamente e prejudicialmente para a própria comunidade. Nessas condições, a moral repressiva (ou a civilização que esteriliza os instintos de prazer) é a grande responsável pela violência e agressividade da humanidade, e não, como afirma Freud, uma necessidade para suprimir ou refrear tais instintos.
Assim, segundo Reich, a moral repressiva serve menos para represar instintos nocivos à sociedade, e mais para atender aos interesses das classes dominantes em manter os seus privilégios econômicos.
A família tradicional inicia o seu trabalho de castração sobre os primeiros instintos eróticos da criança. Esta fica impedida não apenas de dar vazão à sua atração pelos pais, como também de realizar jogos eróticos com seus amiguinhos, ou mesmo de praticar a masturbação.
Uma moralidade democrática deveria julgar os atos sexuais pelo modo como os parceiros se tratam, o nível de respeito mútuo, a presença ou ausência de coerção e a quantidade e qualidade dos prazeres que eles proporcionam. Não deveria ser foco de preocupação ética se os atos sexuais são homo ou heterossexuais, realizados em casal ou em grupo, nus ou com roupa íntima, comercial ou gratuito, com ou sem vídeo.
As regras culturalmente estabelecidas para as questões sexuais são bem-vindas quando servem para delimitar comportamentos considerados agressivos para a sociedade, como por exemplo, o estupro, a pedofilia e a exploração sexual de mulheres. Mas quando a moral exige padrões de conduta que muitas vezes não são seguidos por aqueles que discordam desses padrões ou possuem valores diferentes, surge o preconceito – a discriminação que prejudica muito a individualidade e a convivência entre as pessoas.
É nesse cenário que entra a PROSTITUIÇÃO. O conceito de prostituta tem variações dentro da história da humanidade, assim como seus papéis na sociedade. Autores como Roberts (em “As prostitutas na história”, 1998) mencionam a existência das chamadas Prostitutas Sagradas no Período Primitivo. Ela refere-se à atividade praticada por essas mulheres como um tradicional ritual sexual que existiu desde a Idade da Pedra e foi sendo incorporado às primeiras civilizações do mundo com seu conceito e práxis ressignificados, até chegar ao que chamamos de prostituição.
O filósofo Ullmann (em “Amor e sexo na Grécia antiga”, 2007) nos conta que, entre os babilônios, havia o costume de, ao menos uma vez na vida, toda mulher babilônia sentar-se no templo de Afrodite e esperar que algum estrangeiro a escolhesse para copular em troca de dinheiro. Esse dinheiro era considerado sagrado e parte dele deveria ser entregue como oferenda à Afrodite. Após o intercurso sexual, a mulher deveria voltar aos seus hábitos caseiros normais. Muitas ficavam anos a espera de serem escolhidas.
Segundo o sociólogo Michel Foucault (em “História da Sexualidade I: a vontade de saber”, 1988), há registros de uma relativa liberdade sexual até o século XVI, na maneira como os corpos poderiam ser expostos, nas práticas sexuais e no modo como os discursos se davam em torno do sexo. É nesse mesmo período, como desenvolvimento das sociedades burguesas vitorianas e do capitalismo, que se inicia uma hipótese repressiva, entendida como mecanismo de coerção e autoritarismo, de obediência e censura.
Até que, no século XX, esse discurso ganha novas feições. Sobre essa nova postura da prostituta, Rago (em “Feminismo e Subjetividade em tempos Pós-modernos”, 2004) afirma que ocorre uma nova formação de sua identidade, fruto de influências advindas do movimento feminista. Ainda segundo a autora, apesar de o feminismo não saber abordar a questão da prostituição, procurando apenas contorná-la, a prostituta soube incorporar os ideais feministas, elaborando assim uma nova identidade proposta pelos discursos presentes no movimento. A exemplo disso, Rago relata que a identidade foi construída a partir de parâmetros estabelecidos pela medicina vitoriana e pela antropologia criminal, para se pensarem como “‘trabalhadoras do sexo’, sem a presença dos antigos gigolôs e cafetões”.
O clichê diz que a prostituição é a profissão mais antiga do mundo. Ela, de fato, vem de longe. No Brasil, porém, só foi incluída na Classificação Brasileira de Ocupações em 2002. O reconhecimento do Ministério do Trabalho e Emprego foi um avanço. A Fundação Mineira de Educação e Cultura (FUMEC) estima que o Brasil tenha cerca de 1,5 milhões de pessoas – homens e mulheres – que vivem em situação de prostituição; no mundo, são mais de 40 milhões, segundo a fundação francesa Scelles.
Ao mesmo tempo, a palavra “prostituição” figura no Código Penal no artigo 230, que trata do crime de rufianismo. Diz a lei que cobrar pela atividade sexual não é crime, mas lucrar com o sexo de terceiros, sim. Ser prostituta pode. Ser cafetão, não. Mas existe aí um erro interpretativo entre a Constituição Federal e o Código Penal: segundo a CF, qualquer trabalhador pode se organizar em cooperativas, mas o código diz que, se duas prostitutas se unirem para alugar um local de trabalho, configura que uma está explorando a outra.
A luta pela regulamentação da prostituição é, em primeiro lugar, uma luta de uma classe trabalhadora, que tem direito aos benefícios sociais como qualquer outra categoria, consideradas as suas especificidades — mais acesso a políticas de saúde pública, aposentadoria regulamentada, por exemplo. Em primeiro lugar, a ideia de que a luta é de uma classe trabalhadora passa pelo fato de que a prostituição não é exercida apenas por mulheres, mas também por homens.
A fala de diversos estudiosos sobre o assunto revela a heterogeneidade de discursos sobre o tema. Existem alguns discursos muitos fortes sobre a culpa em torno da profissão de prostituta, como se em sua vivência esse sentimento fosse necessariamente presente, tornando impossível a prática da prostituição enquanto escolha e prazer.
Isso não é verdade. Pizani (em “Formas de Prazer”, 1994) realizou uma pesquisa entrevistando garotas de programas de luxo em São Paulo, constatando que algumas delas afirmavam que o lado bom dessa profissão é se relacionar com os clientes, criando laços de amizade e companheirismo. Além disso, existem, como colocado por elas, uns clientes em que se tem tesão, além de eles pagarem bem, ocorrendo muitas vezes de se apaixonarem e se apegarem aos mais rotineiros. Outras colocam que sentem prazer nessa profissão e dão prazer ao homem.
A partir da fala dessas mulheres, pode-se perceber que existe um prazer sexual em trabalhar como garota de programa, além de que costumam gozar nessas relações sexuais. Segundo Martin (em “Riscos na prostituição: Um olhar antropológico”, 2003), a prostituta, além da questão econômica, também realiza suas fantasias de serem desejadas e amadas pelo sexo masculino. Isso não quer dizer que seus desejos e fantasias sejam satisfatoriamente correspondidos – esclarecendo que no momento da relação com seu freguês, além de buscar o pagamento, busca prazer sexual, existindo também sentimentos e emoções de ambas as partes. Além disso, a partir do momento em que há expectativa por parte do cliente e da profissional do sexo, tal relação vai muito além de um aspecto apenas comercial. A autora acrescenta que a afetividade pode ocorrer na relação cliente/prostituta, em que o programa pode ser uma forma de realizar desejos românticos, incluindo passeios e jantares, ou mesmo sexuais. E que uma relação pode ser bem mais interessante, quando essas mulheres sentem atração sexual pelo cliente.
Para a pesquisadora Laura Murray, do Observatório da Prostituição da UFRJ, é possível comparar a prostituição com qualquer outra profissão, principalmente diante do discurso de que as mulheres escolhem esse ofício por falta de opção. “O que mais escuto são histórias de mulheres que saíram de trabalhos em que se sentiam mais exploradas. É uma escolha feita dentro de um esquema de desigualdades, ponderando objetivos e prioridades. O mundo tem desigualdade de gênero e é complicado para uma série de profissões desvalorizadas,” explica.
Para ela, há que se encarar a reivindicação por mais direito aos profissionais do sexo mais como uma luta da classe trabalhadora do que como uma luta feminista à regulamentação do ofício como um direito de classe. É uma forma de tirar a classe da clandestinidade, igualando-as a qualquer outro. “Acredito que elas têm o direito de usar o seu sexo para ganhar dinheiro. Se as mulheres casadas, solteiras, feministas podes usar o seu sexo para o que querem, as prostitutas podem usá-lo para ganhar dinheiro. Então, o sexo tem que ser visto como um direito. A sexualidade é um direito, seja ela exercitada para ganhar dinheiro, de graça ou por amor. E elas têm esse direito de escolha,” enfatiza Murray.
Em março deste ano, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que uma prostituta poderia requerer judicialmente o pagamento dos serviços prestados. O Tribunal de Justiça do Tocantins havia decidido que o compromisso de pagar por sexo não seria passível de cobrança judicial, com a justificativa de que a prostituição não é uma atividade que deva ser estimulada pelo Estado.
“Não se pode negar proteção jurídica àqueles que oferecem serviços de cunho sexual em troca de remuneração, desde que, evidentemente, essa troca de interesses não envolva incapazes, menores de 18 anos e pessoas de algum modo vulneráveis e que o ato sexual seja decorrente de livre disposição da vontade dos participantes,” afirmou o ministro Rogerio Schietti Cruz em seu voto. Ele salientou que o Código Brasileiro de Ocupações de 2002, do Ministério do Trabalho, menciona a categoria dos profissionais do sexo, o que “evidencia o reconhecimento, pelo Estado brasileiro, de que a atividade relacionada ao comércio sexual do próprio corpo não é ilícita e, portanto, é passível de proteção jurídica”.
Assim, indo além dos estereótipos, pode-se constatar que muitas das profissionais do sexo sentem-se satisfeitas por conseguirem viver de forma independente, com autonomia e direito de escolherem sobre suas próprias vidas, exercendo a sexualidade de forma livre.
Sebastião Tadeu Ferreira Reis