Covid-19 infestou Norte do país pelos rios

Região Norte é a mais afetada pela pandemia do novo coronavírus em termos proporcionais. Autoridades não conseguiram impedir o avanço da doença. Falta de fiscalização permitiu aglomerações em embarcações numa rota de 16 mil quilômetros de rios, em mais de 197 terminais hidroviários oficiais, infestando todo o interior dos estados da Amazônia, entrando pela floresta e contaminando aldeias indígenas
Embarcações lotadas e sem fiscalização espalharam o novo coronavírus rapidamente por toda a Amazônia

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Brasília — Um estudo do médico e doutorando na Universidade de Oxford, no Reino Unido, Ricardo Parolin Schnekenberg, ilustra como embarcações lotadas de passageiros, sem fiscalização e medidas preventivas de distanciamento, uso de máscaras e limpeza das mãos produziu, das capitais em direção ao interior, numa rota de 16 mil quilômetros de rios, em mais de 197 terminais hidroviários, a maior infestação do novo coronavírus proporcionalmente no Brasil. A região Norte é a mais afetada pela pandemia da Covid-19, se alastrando em toda a Amazônia, invadindo aldeias e contaminando indígenas na Floresta.

O pesquisador produziu um mapa que ilustra como a covid-19 se disseminou na região, partindo dos grandes centros amazônicos para locais menores, que são o destino das viagens pelo rio.

As autoridades não tomaram as medidas adequadas para exigir dos passageiros a obediência das regras básicas de prevenção. Com barcos cheios, coronavírus seguiu rota de rios para infestar a Amazônia.

Falta de fiscalização assusta

Nem a Capitania dos Portos, responsável pela fiscalização da navegação nos rios da Amazônia sabe ao certo o tamanho do problema que envolve o número de barcos clandestinos que singram os rios da região.

A última estimativa apontava que 50 mil barcos clandestinos navegam diariamente na Amazônia, a maioria no Pará e no Amazonas — Estados que concentram 75% do tráfego fluvial da região.

Não há levantamento preciso do total de embarcações na região amazônica.

A reportagem do Blog do Zé Dudu apurou que a Agência Reguladora dos Serviços Públicos Concedidos do Amazonas (Arsam), do estado de mesmo nome, apontam que dezenas de linhas intermunicipais atuam sem qualquer regulação, resultando em mais de 200 embarcações que navegam sem qualquer fiscalização.

“Dentro da competência federal, no que diz respeito à navegação interior, apenas 10% das empresas de navegação são regulamentadas pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq). Portanto 90% das empresas que aqui atuam no Amazonas deveriam ser regulamentadas, fiscalizadas e fomentadas pelo Governo do Estado”, disse o diretor Luciano Moreira.

Segundo a Antaq, 2,5 milhões de pessoas usam o transporte nas embarcações a cada ano no Amazonas. Em toda a Amazônia Legal, mais de 10 milhões de pessoas usam os rios para se deslocar.

A média anual de movimentação de cargas no Amazonas é de cerca de 50 milhões de toneladas.

Descobrir os números do Pará são ainda mais desafiadores. Ninguém se dispôs a responder as perguntas da reportagem e assim é nos demais 8 estados que compõem a Amazônia Legal. É histórico o desapreço dos governantes por pesquisas e números que respaldem a elaboração de políticas públicas do Brasil.
“A questão é que as viagens de barco são o ambiente propício para os eventos de superspreading [super espalhamento], nos quais uma única pessoa, às vezes assintomática, contamina dezenas ou centenas de pessoas. Bastava que isso tivesse acontecido uma única vez, e toda a região Norte seria contaminada”, afirma o médico, que pesquisou a situação da covid-19 na Amazônia.

O mapa (veja no vídeo acima) mostra que os casos começaram a surgir basicamente a partir da metade de março e começaram a ganhar uma força devastadora entre abril e maio.

“Pelo mapa, os casos ocorrem quase simultaneamente em várias cidades da região Norte, como Manaus, Belém e Macapá. E poucos dias depois, em várias outras cidades da região. Essa expansão tão rápida em uma área geográfica tão grande é impossível de ter sido sequencial. Ou seja, quando aqueles casos foram detectados, a coisa já tinha se espalhado fazia semanas”, avalia.

Segundo Januário Cunha Neto, presidente do Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Amazonas, os rios foram decisivos no processo de espalhamento do vírus. “As nossas estradas são os rios. Quase a totalidade dos municípios só são acessados por eles”, observa.

Procurado diversas vezes pela reportagem, o secretário de Saúde do Estado do Pará, que preside Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Alberto Beltrame, não atende os pedidos de entrevista da reportagem há meses o que impediu a checagem das informações levantadas pelo médico pesquisar do estudo desta matéria.

A chegada do vírus

Viajando pelos rios o coronavírus causou a primeira morte fora dos estados de Rio de Janeiro e São Paulo. O pescador e empresário Geraldo Sávio, 49, morreu vítima de covid-19 em 24 de março. Ele morava em Parintins e visitou Manaus dias antes de apresentar os sintomas — que chegaram a ser confundidos com um resfriado.

Também por barco o vírus chegou à cidade hoje com maior número de casos do país, em termos proporcionais: São Gabriel da Cachoeira, no extremo oeste do Amazonas, onde quase 5% da população já foi contabilizada com a covid-19.

“Nosso município é um dos maiores do mundo em área, é quase um país. Montamos barreira sanitária, mas furaram-na. Só liberamos a navegação de balsas para entrega de insumos e alimentação. As viagens de lancha e barco foram suspensas, mas algumas pessoas se escondiam nas balsas, desciam antes e chegavam infiltradas. Temos muitos braços de rios”, afirma o secretário municipal de Saúde Fábio Sampaio.

A hipótese de que o início da circulação do coronavírus tenha ocorrido antes do fechamento das cidades será alvo de análise da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) Amazônia.

O pesquisador Felipe Naveca foi o primeiro a sequenciar o novo coronavírus que apareceu no Norte. Ele explica que fez a análise de 30 amostras de mortes por causas respiratórias sem agente causador definido em dezembro de 2019 no Amazonas, mas não encontrou o novo coronavírus. Ele pretende analisar mortes registradas em janeiro e fevereiro, para comprovar se o vírus circulou ou não naqueles meses.

Naveca concorda que os itinerários pelos rios contribuíram para a disseminação do novo coronavírus. “Apesar de a Marinha ter participado desse controle do isolamento, no início isso demorou a acontecer; o tempo foi passando, e o vírus, se alastrando. E os municípios tinham dificuldades com testes, mandar as amostras para Manaus levava dias para sair o resultado, e aí teve tempo para o vírus se espalhar.”

Ele explica que as próprias características dos barcos contribuem para uma contaminação de muitas pessoas. “Na maioria dos barcos, as pessoas penduram as redes uma por cima das outras, então o contato realmente é próximo. Como você vai ficar dias naquela situação, a chance de ter um contato mais próximo e de transmitir, se alguém estiver positivo, existe”, pontua.

Estudo aponta que vírus da Covid-19 saiu das capitais para interior pelos rios da região

10 milhões de passageiros por ano

A importância dos rios para o transporte na Amazônia foi atestada em um levantamento da UFPA (Universidade Federal do Pará) e Antaq (Agência Nacional de Transportes Aquaviários), que apontou 9,7 milhões de passageiros que passaram em 2017 pelos 196 terminais hidroviários oficiais da região. “Isso é o que a gente sabe por portos oficiais, fora os que a gente não sabe. Acho que é até o dobro disso”, diz Hito Braga, diretor da Faculdade de Engenharia Naval da UFPA.

O presidente do Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Amazonas afirma que faltou fiscalização nos embarques para o interior. “Não existia uma triagem de saúde em Manaus. Não houve uma barreira sanitária, triando os passageiros com sintomas respiratórios e impedindo que eles embarcassem.”  

Cunha Neto pondera que o fechamento das cidades ainda em março, com barreiras sanitárias, impediu um problema ainda mais grave para esses municípios. “As barreiras foram plenamente estabelecidas nas cidades, e isso favoreceu bastante para que o caos não se instalasse. Nós hoje estamos vivendo a real interiorização do vírus e já aconselhamos os municípios a realizar a testagem em massa”, concluiu.

Caso semelhante ocorreu no Pará, com o prolongamento do decreto estadual de lockdown nos municípios de Abaetetuba e Cametá. Onde o vírus do novo coronavírus entrou por terra e pelo rio.

Reportagem: Val-André Mutran – Correspondente do Blog do Zé Dudu em Brasília.