Em audiências no Senado e na Câmara, jornalistas acusam Poderes Judiciário e Executivo de promoverem censura no Brasil

Direito constitucional à livre expressão estaria sendo reiteradamente violado, denunciaram os profissionais de imprensa
Jornalistas norte-americanos Glenn Edward Greenwald e Michael Shellenberger, e os brasileiros David Ágape e Eli Araújo Vieira Júnior, participaram de audiência pública na Câmara dos Deputados

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Duas audiências públicas, a primeira na Comissão de Comissão de Comunicação e Direito Digital (CCDD), do Senado Federal, e a outra na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional (CREDN), quatro jornalistas, de duas nacionalidades, expuseram a senadores e deputados federais graves acusações de supostas violações do direito constitucional  de liberdade de expressão, que estariam sendo promovidas pelos Poderes Judiciário e Executivo no Brasil.

Aos senadores membros da CCDD, os debatedores afirmaram que órgãos ligados aos Poderes Judiciário e Executivo, promovem atos de censura no Brasil, durante audiência pública sugerida e presidida pelo senador Magno Malta (PL-ES). Veja um trecho da audiência.

O debate contou com a presença dos comunicadores Michael Shellenberger e David Ágape. Eles são responsáveis pela divulgação do chamado “Twitter Files Brazil”, uma série de e-mails trocados por funcionários do antigo Twitter — rebatizado como X. As mensagens supostamente sugerem que decisões da Justiça brasileira resultaram na exclusão ilegal de conteúdos publicados na rede social.

Jornalista norte-americano Michael Shellenberger (paletó azul, ao centro da mesa), detalhado em audiência no Senado, aspectos de sua investigação no caso Twitter Files Brasil

Para o arquiteto David Ágape, que se intitula “jornalista investigativo freelancer”, o Supremo Tribunal Federal (STF), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e a Advocacia Geral da União (AGU) estão entre as instituições do Estado brasileiro que atuam para “controlar o discurso na internet” e “violar o direito de privacidade dos cidadãos brasileiros”.

Ágape classifica o Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia, criado pelo TSE, e a Procuradoria de Defesa da Democracia, ligada à AGU, como “Ministérios da Verdade”. A expressão é uma referência ao livro 1984, do escritor inglês George Orwell. Na obra, o Ministério da Verdade é responsável por censurar tudo o que é escrito para manter no poder um governo totalitário.

“O Judiciário é definitivamente o principal foco de censura nos últimos anos. A censura tem sido feita através dos diversos inquéritos, muitos deles sigilosos. Ninguém sabe o que está sendo feito nos bastidores. Muitos dos que estão sendo investigados não sabem o porquê. São investigações infinitas. O inquérito das fake news [inquérito 4781, em andamento no STF] já comemora cinco anos. Eles são conduzidos pelo ministro Alexandre de Moraes de forma truculenta. Tudo isso porque acreditam que a direita e [Jair] Bolsonaro são um grande risco para a democracia”, afirmou Ágape.

O ativista ambiental e jornalista norte-americano Michael Shellenberger, que divulgou o “Twitter Files Brazil” em sua conta na rede social X, avalia que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva “está propondo muitas medidas, leis e ações para censurar as pessoas”.

“O que me faz triste, me dá medo. A liberdade de expressão é fundamental. Se você perde isso, você perde tudo. Uma coisa que me dá mais raiva é a ideia de que precisa censurar para proteger a democracia. A gente passou séculos de democracia com pessoas reclamando sobre o processo das eleições, e ainda temos democracia. Agora eles querem censurar as reclamações sobre as eleições. Se você não defende [a divulgação de] ideias que você odeia, você não é realmente um defensor da liberdade de expressão”, disse Shellenberger.

Base aliada do governo não compareceu ao debate

A audiência pública da CCDD contou apenas com a presença de senadores da oposição. Para o senador Malta, que sugeriu e presidiu o debate, a divulgação do “Twitter Files Brazil” por Michael Shellenberger e David Ágape representa “um processo de libertação”. Os senadores oposicionistas criticaram a falta do contraditório durante o debate: “Alguém sabe me informar por onde andam os defensores da democracia que apoiam o governo”, disse em tom de galhofa, sem citar nomes, um dos senadores oposicionista.

“A liberdade é um bem maior. Infelizmente, fomos cercados, de uma hora para outra sem perceber, como o sapo na água fria. A água foi esquentando. Quando ela ferveu, a gente já estava dentro da panela”, comparou o senador Malta.O senador Rogério Marinho (PL-RN) avalia que o Brasil “está mergulhado em uma situação claramente inquisitorial”. Para o congressista, uma “engenharia social implementada em caráter global” restringe a manifestação de pessoas de um determinado viés ideológico.“Se as pessoas defendem o respeito à família e a vida desde a concepção, são contra a liberação das drogas, querem que a maioridade penal aconteça até os 16 anos, se são a favor do empreendedorismo e do mérito, são contra as cotas e defendem o direito de propriedade… Então, essas pessoas são estigmatizadas e colocadas como não cidadãos ou não indivíduos. Como tal, são combatidas por esse sistema que se estabeleceu no mundo inteiro”, avaliou Marinho.O senador Eduardo Girão (Novo-CE) foi mais enfático e objetivo e voltou a defender o impeachment do ministro do STF Alexandre de Moraes.“Eu defendo isso claramente: o impeachment do ministro Alexandre de Moraes. Um inquérito que não tem fim, que ele mesmo julga. Ele é o dono da bola. A caçada implacável é só para um espectro político-ideológico. Nós podemos ter divergências na política. Isso faz parte da democracia. Mas a gente não pode censurar, porque é uma violência. É tirar a essência do ser humano”, criticou Girão.

Twitter Files Brazil

O senador Astronauta Marcos Pontes (PL-SP) entende que a divulgação do “Twitter Files Brazil” traz “muitas evidências que precisam ser verificadas”.

“Não gosto de acusar as pessoas sem provas ou ser injusto. Mas o que nós vemos aqui é um caso em que temos muitas evidências que precisam ser verificadas. O problema acontece quando a gente vê o conceito de democracia ser distorcido para disfarçar um autoritarismo entrante. No momento em que você cria narrativas para substituir informação, ou cria desinformação para substituir informação, isso é antidemocrático”, disse Pontes.

Para o senador Marcos Rogério (PL-RO), o país enfrenta um “dualismo”.

“Há censura ou controle de narrativas? O Brasil está vivendo esse dualismo no debate nacional. “Não existe censura”, afirmam alguns. Mas há um movimento muito claro, muito nítido de controle de narrativas. Na CPI da Covid, nós vimos a evidência disso dentro desta Casa. Aquele foi um palco de produção de narrativas. Narrativas não são fatos. É a versão que você dá aos fatos para deformar a opinião do cidadão”, afirmou Marcos Rogério.

O senador Wellington Fagundes (PL-MT) acredita que a liberdade de expressão deve ser assegurada inclusive à “pessoa que está com ódio”.

“Deixa o ódio falar. Até isso é liberdade. Se você deixa aquela pessoa que está com ódio no momento falar, quem sabe ela até mude de posição. Se você não a deixa falar, você não vai deixá-la extravasar. Tudo isso é a democracia. O que a gente quer com essa audiência é discutir como nós podemos fazer que o Brasil seja um país onde as pessoas tenham o direito de falar, inclusive os absurdos. Claro, respondendo dentro da legislação o que está previsto em lei também”, ponderou Wellington.

Para o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), “ninguém é mais vítima de fake news no Brasil” do que o pai dele, o ex-presidente da República Jair Bolsonaro.

“Fake news nós combatemos com a verdade sem censura. A história de vida dele [Jair Bolsonaro] prova que ele nunca foi racista, homofóbico, ditador ou autoritário. O consórcio que há hoje da grande mídia para produzir narrativas mentirosas contra qualquer um que defenda nossas bandeiras é uma máquina difícil de ser combatida”, afirmou.

Bloqueio de contas e censura no X (ex-Twitter) são expostos na audiência na Câmara dos Deputados

Na mesa, da esquerda para a direita, o jornalista Eli Araújo Vieira Júnior (Gazeta do Povo) e o deputado federal Lucas Redecker (PSDB-RS), em audiência pública na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados

Diferente da audiência no Senado, na Câmara dos Deputados, congressistas a favor e contra o governo, compareceram na terça-feira (16), na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Casa, para ouvir de viva-voz as acusações de jornalistas contra o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes de censura ao solicitar o bloqueio de contas na rede social X (antigo Twitter).

Um deles foi o jornalista norte-americano Michael Shellenberger, responsável por divulgar, no início do mês, um compilado de e-mails trocados por funcionários da plataforma X a respeito de decisões judiciais brasileiras que envolviam a rede social e investigações ao longo do período de 2020 a 2022. O caso ficou conhecido como “Twitter Files Brazil”. Para o jornalista, Moraes quer censurar seus inimigos políticos.

Shellenberger defendeu a liberdade de expressão de forma ampla — por exemplo, o direito de nazistas e fascistas defenderem suas ideias. “A gente quer debater e vencer as ideias ruins deles”, disse. Nos Estados Unidos, a liberdade de expressão é um direito absoluto, enquanto no Brasil há restrições, como no caso da apologia ao nazismo e ao racismo.

O jornalista norte-americano Glenn Greenwald, colunista do jornal Folha de S. Paulo e fundador do site The Intercept, acredita que Moraes agiu sem base legal ao exigir a remoção de postagens e o banimento de contas, inclusive de congressistas e muito políticos com mandato, como deputados estaduais e vereadores, em todo o Brasil, no âmbito do inquérito das Milícias Digitais, considerado por muitos juristas, um processo inconstitucional, porque não tem a presença do Ministério Público. Segundo Greenwald, as pessoas não receberam aviso prévio do banimento nem explicações dos motivos. O jornalista estadunidense, acrescentou que essas ordens de banimento foram sigilosas e sem o devido processo legal.

O deputado Marcel van Hattem (Novo-RS), que pediu a audiência, destacou que foi um dos congressistas alvo de pedidos de remoção de conteúdo em processo sigiloso e que vai solicitar o fim do sigilo. Para ele, está em curso “um processo industrial de censura” e de “perseguição covarde contra desafetos” do ministro Alexandre de Moraes. “A censura não pode prevalecer, e a liberdade de expressão tem que ser regra, porque sem liberdade de expressão não há democracia, sem devido processo legal não há democracia”, defendeu van Hattem.

Outro lado

Já o deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP) lamentou a ausência de contraditório na audiência, já que todos os convidados defenderam o mesmo ponto de vista. Van Hattem observou, por sua vez, que uma convidada indicada por Chinaglia, foi convidada, mas não compareceu, assim como o representante da plataforma X.

Meio sem graça, Chinaglia apontou que, de 2012 a 2021, na soma das solicitações de remoção por país recebidas pela plataforma X, o Brasil figura em antepenúltimo da lista. “Portanto, tentar caracterizar que, no Brasil de hoje, e desde 2012, haja uma atitude de censura é um exagero retórico que se transforma em mentira”, avaliou.

O deputado argumentou que, assim como fez com Alexandre de Moraes no Brasil, o dono da rede X promoveu ataques do tipo em outros países. Conforme Chinaglia, a Comissão Europeia abriu processo contra o X por possíveis violações da recente lei de serviços digitais. “A resposta do Musk foi atacar a presidente da comissão, que é eleita por todos os países da Comunidade Europeia”, citou.

Marco Civil da Internet

O deputado Filipe Barros (PL-PR) ressaltou que o Marco Civil da Internet — a lei existente para regular a rede — é muito claro ao estabelecer que, se houver afronta à legislação, deve-se censurar uma publicação específica mediante decisão judicial motivada. “Nós não vimos isso em nenhuma das decisões que vieram a público até agora”, apontou. De acordo com o deputado, as decisões são genéricas, visando retirar do ar o perfil de usuários por tempo indeterminado.

O deputado Florentino Neto (PT-PI) argumentou que não há censura em curso, porque os processos podem ser contestados no âmbito do Supremo Tribunal Federal. “Não podemos ter uma sociedade baseada em ameaças e mentiras. Temos que estabelecer parâmetros mínimos para a convivência nessas plataformas”, opinou. Ele defendeu a regulamentação das redes sociais, para proteger os usuários contra excessos praticados. “Não vejo razão para termos dificuldades em colocarmos à disposição dos usuários recursos para que eles possam denunciar serviços ilegais da plataforma”, citou.

Direito de mentir

O jornalista Eli Vieira Junior, da Gazeta do Povo, afirmou que em nenhum lugar da legislação brasileira está escrito que é proibido produzir ou propagar fake news, desinformação ou discurso de ódio. “Esses termos são particulares de uma determinada visão política, que, não satisfeita que essas expressões não são tipificadas como crimes, planeja usar o aparato burocrático do País para fazer valer a sua opinião”, afirmou. “É a lei que deve mandar, e não a opinião política em voga no momento”, acrescentou.

Ele acredita que permitir que preconceituosos falem com liberdade não é um endosso ao conteúdo que eles falam e não causam aumento do preconceito e da discriminação. Na visão dele, mentir não deve ser um crime no Brasil, assim como odiar, até que isso culmine em ações danosas concretas, ameaças credíveis ou difamação e calúnia. E para isso já há remédio jurídicos adequados, bastando ser acionado por qualquer cidadão que se sentir ofendido ou prejudicado.

Privacidade

Na avaliação do jornalista freelancer David Ágape, por meio do caso “Twitter Files”, o Judiciário brasileiro exige que a plataforma X descumpra a lei e entregue dados de cidadãos, em desconformidade com o Marco Civil da Internet e com a proteção da privacidade garantida em lei. Para ele, a atitude da plataforma de não entregar os dados é correta diante do que definiu como arbítrio de “demandas ilegais da Justiça brasileira”.

Ele acredita que o combate às fake news está sendo direcionado apenas à direita. Embora os conteúdos de alguns atores de esquerda tenham sido removidos judicialmente, o jornalista alega que, nos casos dos atores de direita, muitos perfis foram bloqueados e continuam bloqueados, o que seria censura prévia.

David Ágape criticou ainda o Projeto de Lei n° 2.630/2020, conhecido como PL das Fake News, já aprovado no Senado Federal e travado na Câmara dos Deputados, e defendeu o Marco Civil da Internet. Recentemente o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), afirmou que a proposta não vai ser votada na forma atual, mas que vai criar um grupo de trabalho para debater o texto.

* Reportagem: Val-André Mutran – Correspondente do Blog do Zé Dudu em Brasília.