O tempo fechou em Brasília, mas o motivo não é climático e sim financeiro. Um dia após a Receita Federal suspender a isenção tributária sobre a remuneração de líderes religiosos, a Bancada Evangélica no Congresso Nacional, composta por 132 deputados e 14 senadores, em nota publicada em contas nas suas redes sociais assinada pela Frente Parlamentar Evangélica (FPE), promete esquentar ainda mais o clima tóxico da relação do Executivo com o Legislativo, amenizado no final do ano passado.
A isenção tinha sido concedida em agosto de 2022, no governo do então presidente Jair Bolsonaro (PL). Agora foi revogada por meio de ato publicado no “Diário Oficial da União” (DOU), pelo secretário especial da Receita, Robinson Barreirinhas, na quarta-feira (17), gerando um clima de rebelião em líderes religiosos com mandato ou não, resultando numa das notícias mais comentadas desta quinta-feira (18).
Na prática, “os valores despendidos pelas entidades religiosas e instituições de ensino vocacional com ministros de confissão religiosa, com os membros de instituto de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa, em face do mister religioso ou para a subsistência”, voltarão a ser “considerados como remuneração direta ou indireta” — e consequentemente serão tributados como tal.
Segundo comunicado da Receita, a decisão “atende determinação” do Tribunal de Contas da União (TCU). A Receita não informou, entretanto, qual a estimativa de arrecadação com a medida.
Em dezembro, a unidade especializada em tributação do TCU recomendou a suspensão da isenção até uma análise definitiva por parte do órgão, ainda sem previsão de acontecer. O tribunal soltou nota à noite, informando que “ainda não há decisão no processo que avalia a legalidade e a legitimidade da isenção de impostos”.
Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) informou que a União deixou de arrecadar cerca de R$ 300 milhões com um ato editado no governo Bolsonaro que ampliou a isenção de impostos sobre salários pagos a líderes religiosos, como pastores evangélicos. O valor se refere a um estoque de dívidas que estão sendo questionadas administrativa e juridicamente pelas instituições religiosas com base na norma.
A informação consta em um relatório sigiloso do TCU datado de dezembro de 2023. A cifra foi calculada pela Receita Federal e leva em conta valores com “exegibilidade suspensa” ou “parcelada” entre 2017 e 2023.
“Ainda de acordo com a RFB (Receita), os valores envolvidos que estão suspensos ou em cobrança somam um total de aproximadamente R$ 300 milhões, sendo que quase R$ 285 milhões estão com exigibilidade suspensa”, diz o texto.
A auditoria do TCU recomenda ainda a abertura de uma sindicância contra o ex-secretário da Receita, Julio Cesar Vieira Gomes. O procedimento seria tocado pela Corregedoria do Ministério da Fazenda. Isso ainda será analisado pelo plenário do TCU.
Os técnicos do TCU argumentam que, ao conceder benefícios fiscais “sem observar as formalidades legais ou regulamentares”, o ex-secretário pode ter incorrido em ”infração disciplinar e potencial ato de improbidade administrativa”.
Também afirmou que a medida “carece de exposição de motivos que justifiquem sua edição e avaliem custos ou impactos sobre a matéria” e “não seguiu o rito” das normas baixadas pela Receita.
Diante da repercussão do caso o Ministério da Fazenda não informou se um processo foi aberto contra Gomes, que já foi alvo de apurações sobre tentativas de liberar joias sauditas dadas a Bolsonaro e retidas pela Receita no aeroporto de Guarulhos.
O benefício foi dado pela gestão Bolsonaro às vésperas das eleições presidenciais e leva a assinatura de Julio César Vieira Gomes. O tema estava sob análise do Tribunal de Contas da União (TCU) e também da própria Receita, já que a concessão da isenção aos líderes religiosos foi considerada atípica porque não passou pelo crivo da Subsecretaria de Tributação da Receita Federal.
A partir de agora, valores pagos por igrejas a pastores e por instituições vocacionais voltam a ser considerados remuneração direta, o que exige o pagamento das contribuições previdenciárias. Anteriormente, eram tratados como remunerações somente as frações do pagamento referentes a aulas ou atividade laboral propriamente dita.
Os atos não tratam especificamente de igrejas evangélicas, mas a questão que deu origem à polêmica gira em torno da chamada prebenda, como se denomina a remuneração paga ao pastor ou líder do ministério religioso por seus serviços.
Internamente, auditores da Receita entenderam que a prebenda era usada para distribuir valores de remuneração, mas sem pagamento de contribuição previdenciária, o que levava a autuação de alguns casos. O ato do governo Bolsonaro dizia que o pagamento de valores diferenciados, no montante ou na forma, “não caracteriza esses valores como remuneração sujeita à contribuição”.
O ato assinado pelo secretário da Receita, Robinson Barreirinhas, foi uma recomendação do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União. Em nota, o TCU disse que o caso está sob análise e que se manifesta “apenas por acórdãos ou decisões monocráticas”.
O presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Unafisco), Mauro Silva, defendeu a decisão.
“O ato anterior (da gestão Bolsonaro) ocorreu em uma data inoportuna e mostrou uma dose de politização da Receita. O conteúdo não estava resolvido, várias decisões administrativas apontavam ao contrário. A questão agora é: porque suspenderam e não anularam logo? Deveria ter sido anulado, há muito tempo. De fato, tem risco para o Erário”, afirmou.
Se a medida tivesse sido anulada, haveria possibilidade de a Receita fazer cobranças retroativas, o que não ocorre na suspensão.
Bancada evangélica fala em “afronta” às religiões
Um dos expoentes da bancada evangélica, o segundo-vice presidente da Câmara, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), afirmou que a decisão é “mais uma prova do veneno do PT contra religiosos”. O parlamentar, que desconsiderou a recomendação do TCU, vê na iniciativa uma tentativa do governo de chantagear o grupo, mas pontua que os evangélicos não cederão à pressão, “pelo contrário”, garantiu.
“Eles estão suspendendo um ato declaratório explicativo. As igrejas já têm constitucionalmente a imunidade. Sustar esse ato é mais uma prova do veneno do PT contra os religiosos. Isso é típico de governo de esquerda”, diz Sóstenes, oposição ao governo Lula (PT).
O integrante da Mesa Diretora da Câmara reclama que a medida abre brecha para que fiscais “façam chantagem e produzam multas indevidas para perseguir o segmento religioso”.
Segundo ele, a resistência à iniciativa será política. O deputado do PL garante que governo não conseguirá se reaproximar do grupo por meio de chantagem.
“Se a tática do governo é nos chantagear, o tiro vai sair pela culatra e não vamos ceder. Eu me nego a acreditar que evangélicos vão ceder à chantagem desse governo e ir lá conversar por causa dessa decisão. Se querem perseguir, que persigam”.
Sóstenes Cavalcante acusa a atitude que ocorre no governo Lula (PT) de afronta as religiões. “Isso não era um ato de Bolsonaro, era um ato elusivo dos técnicos da receita que elucidava o óbvio: salários de líderes de qualquer constituição estavam imunes à imposto, à luz da Constituição Federal. Agora, os técnicos de Lula dão margem a multas indevidas. É mais uma medida de afronta aos religiosos”, defende o parlamentar.
Na mesma toada, o presidente da bancada evangélica no Senado, Carlos Viana (Podemos-MG) afirma que a gestão do petista utiliza as instituições para atacar quem discorda politicamente. “A esquerda pratica o ditado: “Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei” — diz Viana. O argumento de perseguição religiosa também foi mencionada pelo pastor Marco Feliciano (PL-SP), da Assembleia de Deus. “Lula iniciou sua vingança contra nós”, afirmou.
O fundador da Sara Nossa Terra, bispo Robson Rodovalho, concorda com os parlamentares e diz que o ato reiterava o que já estava previsto na Constituição Federal: “Pastores e padres não tem salários. Conceito equivocado. Temos prebendas missionárias, nem sempre fixas. Já se tem leis específicas sobre a imunidade, se alguém recorrer à Justiça, deve cair essa resolução da receita”, garantiu.
O impasse gera uma nova rusga entre o presidente Lula (PT) e os evangélicos. Desde o início do governo, líderes reclamam da ausência de proximidade com o Palácio do Planalto, enquanto pastores ligados ao ex-presidente Jair Bolsonaro mantém críticas ao petista.
Fontes da bancada evangélica avaliam que a iniciativa afasta ainda mais os evangélicos do Palácio do Planalto. A tendência é que a oposição ganhe ainda mais força a partir de decisões do governo que afetem o grupo diretamente.
Essa é a avaliação do deputado Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus e sobrinho de duas lideranças evangélicas que fundaram a igreja, Edir Macedo e R. R. Soares.
“O importante é garantir a imunidade, isenções temporárias podem ser derrubadas”, disse Crivella. Ele menciona uma proposta de emenda constitucional (PEC) de sua autoria, apresentada no ano passado, como solução para garantir a isenção tributária total para religiosos em três aspectos: renda, consumo e patrimônio.
A PEC, já aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, propõe vedar a “instituição ou incidência” de impostos sobre a “aquisição de bens e serviços necessários à formação do patrimônio, à geração de renda e à prestação de serviços”.
No passado, quando era senador, Crivella tentou aprovar uma medida no Congresso para que padres e pastores tivessem carteira assinada. Houve forte reação, inclusive da Igreja Católica, e o projeto não andou.
“Os religiosos vocacionados, caso de freiras, padres e pastores, não têm lucro, férias nem 13º salário. Não há vínculo nenhum e eles ainda serão penalizados com impostos?”, questionou.
Haddad entra no circuito
Na tarde desta quinta-feira, o próprio ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a quem a Receita Federal é subordinada, conversou com o presidente da Frente Parlamentar Evangélica do Senado, Carlos Viana (Podemos-MG), depois da repercussão negativa no segmento religioso sobre a decisão do órgão de anular a norma que dava isenção fiscal a líderes religiosos. Ficou acertado que a bancada evangélica e representantes do Ministério e da Receita Federal formarão um grupo de trabalho para discutir a possível retomada da isenção.
De acordo com Viana, a conversa com o ministro foi longa e a negociação será a prova de que o governo Lula não quer “perseguir as igrejas”. “Nossa expectativa é de que, com diálogo, se consiga resolver definitivamente o assunto da isenção. A meu ver, é a maneira mais transparente do governo Lula provar que não quer perseguir as igrejas”, afirmou o congressista em nota. Confira abaixo a íntegra do documento.
O líder da Frente Parlamentar disse que o grupo será criado depois da volta do Congresso, que está em recesso. Os trabalhos do Legislativo voltam em 1º de fevereiro.
“Nós fizemos um acordo de que assim que os trabalhos legislativos retornarem, nós vamos criar um grupo de parlamentares, representantes do Ministério da Fazenda e da Receita para que a gente possa sentar e resolver definitivamente essa questão, tornando transparente, inclusive, a todo o país o posicionamento dos lados”, afirmou Viana.
Está agendado para esta sexta-feira (19), um encontro de um grupo de pastores com o Secretário Especial da Receita Federal do Brasil, Robinson Barreirinhas, para abrir o diálogo sobre o tema.
* Reportagem: Val-André Mutran – Correspondente do Blog do Zé Dudu em Brasília.
2 comentários em “Evangélicos ensaiam rebelião após corte de isenção tributária a líderes religiosos”
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Quer dizer que o trabalhador assalariado, que trabalho sob sob sol e chuva para ganhar, na maioria dos casos, um salário mínimo tem que pagar tributos e esses bonitões evangélicos querem ser isentos de impostos, só porque tem o dom de encantar serpentes? Ah, me compre um bode!!