Falta de legislação adequada eleva casos de violência obstétrica em todo o país

No Pará, foram registrados 2.873 casos no último levantamento oficial
As mulheres negras são as maiores vítimas da violência obstétrica

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Brasília – A gestante entra na maternidade e, até sair com o bebê no colo, ouve piadinhas sobre a demora para conseguir parir, recebe medicação para acelerar as contrações, sente a pressão das mãos que apertam a sua barriga para forçar a expulsão do nascituro e a dor de ser cortada entre o ânus e a vagina e depois ser costurada com o tal “ponto do marido”. A experiência ainda é rotineira na atenção ao parto no Brasil. Choca, mas há muito não se deve considerá-la normal. Existe um termo para qualificá-la: violência obstétrica, que não para de crescer em todo o país.

A violência em saúde, não apenas a obstétrica, atinge majoritariamente a mulher negra e pobre, machucando o corpo e alma de suas vítimas e precisa de solução, com esse tipo de violência atingindo índices de calamidade no estado do Pará.

Dados ainda preliminares da pesquisa Painel de Monitoramento da Mortalidade Materna, da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, mostram que foram registrados 2.873 casos no Pará em 2022, mas “o número provavelmente está subnotificado”, garante fonte familiarizada com o assunto consultada pelo Blog.

O levantamento aponta que a concentração dos casos no estado estão nas regiões: Metropolitana I, Metropolitana III, Carajás e Baixo Amazonas. Veja o quadro completo:

Painel de Monitoramento da Mortalidade Materna – com dados preliminares para o ano de 2022 (Fonte: Ministério da Saúde)

O número de denúncias de maus-tratos a mulheres durante a gravidez, no parto ou pós-parto não para de crescer. De acordo com números da Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência, em 2019 foram registrados 116 casos de violência obstétrica, contra apenas 15 no ano anterior.

O recado das urnas

Com o crescimento exponencial da Bancada Feminina na Câmara dos Deputados, sobretudo no Pará, estado no qual o fenômeno chamou a atenção por sair de apenas uma deputada federal (Elcione Barbalho, do MDB) para cinco entre as 17 vagas, o recado do eleitor nas urnas está claro. O voto de confiança que mulheres deputadas receberam e que pode se transformar numa oportunidade histórica para a mudança do status quo da política paraense.

Com a bancada feminina reforçada, surgiu uma esperança que os números expostos em duas pesquisas nacionais sobre a violência obstétrica sirvam como parâmetros para que as cinco deputadas federais do Pará lancem mãos à obra sem perda de tempo. Há muito a ser feito.

Comissão Especial

As deputadas interessadas no encaminhamento para a solução do problema terão uma “forcinha” da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados. É que a pedido da deputada Soraya Santos, do PL fluminense, a Casa criou uma comissão especial para debater a violência obstétrica no Brasil.

A deputada ressalta que o crescimento das denúncias pode não indicar necessariamente aumento concreto da prática, mas também que havia subnotificação, principalmente devido à falta de informação por parte das mulheres quanto a seus direitos. De acordo com a parlamentar, o trabalho da comissão será importante justamente para definir claramente o que é violência obstétrica, de modo que a mulher possa se defender, inclusive, judicialmente.

“O primeiro objetivo da comissão é definir o que é violência obstétrica, quais são os níveis de violência, as consequências que pode trazer para a mãe, para a criança, para a família, porque isso tudo, uma vez mapeado, também tem o direito que eles vão ter processual,” explicou. “Eu só consigo entrar [na Justiça] para me defender se eu tiver alguma coisa tipificando se é crime, se isso aqui é crime, se não é crime, se é violência, se não é. Fica muito subjetivo para a pessoa que passa por violência obstétrica porque é o depoimento dela contra o depoimento de uma pessoa que é especialista na área”.

Somente esse ano, a Câmara já recebeu pelo menos cinco projetos sobre o tema para análise. Um deles (PL nº 190/2023) prevê a prisão de cinco anos para quem praticar o crime. Outro (PL nº 422/2023), inclui esse tipo de violência entre os casos previstos na Lei Maria da Penha, destinada a coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

A deputada Soraya Santos explica que, no entendimento da Organização Mundial de Saúde (OMS), a violência obstétrica abrange, por exemplo, procedimentos desnecessários e manobras proibidas para acelerar a saída do bebê, exames dolorosos ou recusa em oferecer atendimento ou alívio para dor. Atitudes como gritos ou insultos durante o parto também se classificam.

Outro índice que aponta para o elevado número de casos de violência obstétrica no Brasil é a mortalidade de mulheres em consequência da gravidez ou do parto. Estudo da pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Maria do Carmo Leal, mostra que, no país, 58 mulheres morrem para cada mil bebês nascidos vivos. Em países como Suécia, Polônia e Japão esse número não chega a seis.

Pesquisas

Uma pesquisa coordenada pela Fiocruz, a “Nascer no Brasil”, revelou que 53,5% das mulheres entrevistadas que passaram pelo parto normal sofreram corte no períneo.

“Já se falava em maus tratos, abuso. Mas quando você define como violência, há um estranhamento entre os profissionais de saúde. ‘Como assim o que eu estou fazendo é uma violência?’, se questionam,”, observa Larissa Velasquez de Souza, que investigou a trajetória histórica do termo no Brasil em tese defendida recentemente no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde na Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).

Para construir essa perspectiva histórica, ela lançou mão de referenciais teóricos, fez entrevistas com profissionais da área, analisou legislações. A partir daí, aprofundou as discussões em torno do termo, que nomeia como violência obstétrica atos que provoquem danos físicos e/ou psicológicos à mulher, praticados por profissional da saúde ou de outras áreas, mas que atuem indiretamente nessa assistência, assim como atos que firam os princípios de autonomia e liberdade de escolha sobre procedimentos a serem realizados no corpo da mulher e aos direitos garantidos, como acesso à informação e assistência baseada em evidência.

Entre as práticas violentas, há condutas fáceis de identificar, como xingamentos ou agressões físicas, mas não somente. Técnicas médicas adotadas rotineiramente sem sustentação científica também entram no rol, como a episiotomia, realizada com base na crença de que facilitaria o nascimento e preservaria a integridade genital da mulher, e a manobra de Kristeller, quando mãos, braços, cotovelos são usados para pressionar a barriga da gestante, forçando a saída do bebê.

Os custos de tais condutas podem ser altos, pois há risco de infecções, deslocamento de placenta, mutilação genital e traumas encefálicos. No Brasil, estudo da Fundação Perseu Abramo, de 2010, revelou que uma em cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência na assistência ao parto. Gritos, procedimentos sem autorização ou informação, falta de analgesia e negligência figuram como os mais frequentes.

Desde 1996, a OMS restringe o uso de determinadas práticas durante o parto a situações específicas. No Brasil, após rever condutas na assistência ao nascimento, o Ministério da Saúde lançou, em 2001, publicação na qual define que a episiotomia de rotina e a manobra de Kristeller, entre outras, são procedimentos “claramente prejudiciais ou ineficazes” e devem ser eliminados. Ainda assim, até hoje ainda são adotadas no país. 

Alto número de cesáreas e de mortalidade materna acenderam alerta

A incorporação do termo violência obstétrica no Brasil foi inspirada na legislação de países latino-americanos e se deu no início do século 21, diante do uso indiscriminado de práticas sem embasamento científico, desaconselhadas pela OMS, e do alto número de cesáreas realizadas no país, que detém a vice-liderança mundial de partos cirúrgicos, atrás apenas da República Dominicana, segundo estudo publicado na revista de publicações científicas médicas The Lancet.

Considerada, também, um tipo de violência institucional e violência contra a mulher já estabelecida em tratados nacionais, a violência obstétrica não possui tipificação em lei a nível federal no país. Despacho de 2019 do Ministério da Saúde considera o termo inadequado, pois os atos não seriam cometidos com a intenção de prejudicar ou causar dano.

Embora a cesárea seja essencial quando partos vaginais podem representar risco, a situação se torna oposta se a cirurgia é realizada sem justificativa científica. O risco de mortalidade na infância pode crescer 25% nos casos de cesáreas sem indicação médica, segundo estudo liderado pelo Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs), da Fiocruz Bahia, e publicado na PLOS Medicine.

Pesquisa realizada pela Fiocruz revelou que 88% dos partos realizados em instituições privadas são cirúrgicos. Número alarmante, se levar em conta que a OMS recomenda uma proporção de 15%. Entre as questões que contribuem para essa situação, estão fatores como a rapidez do procedimento quando comparado ao parto normal e a disputa de mercado, pois a cirurgia é prerrogativa dos médicos. Já o parto normal pode ser realizado por enfermeiras obstétricas.

Segundo a médica Carmen Diniz, professora da Universidade de São Paulo (USP) e referência em estudos sobre violência obstétrica, muitas mulheres deixam de fazer o parto normal e optam pela cesárea para fugir da episiotomia rotineira. Em artigo sobre o tema, escrito com Alessandra Chacham, ela discorre sobre a difícil “decisão” da mulher entre o “corte por cima” (cesárea) ou “o corte por baixo” (episiotomia) e apresenta o argumento de grupos de usuárias organizadas que “acreditam que para tornar o abuso de cesáreas aceitável, é fundamental manter o parto vaginal o mais doloroso e danoso possível, se preciso negando as evidências científicas às quais a prática médica supostamente deveria aderir”.

Um dos principais indicadores de qualidade de atenção à saúde das mulheres no período reprodutivo, a razão de mortalidade materna também deve ser considerada entre as formas de violência obstétrica. O indicador do Painel de Monitoramento da Mortalidade Materna explodiu durante a pandemia, chegando, em 2021, a 107 mortes a cada 100 mil nascimentos –  número muito inferior à taxa média registrada na Europa, por exemplo, de 13 mortes, de acordo com informações do Relatório da Saúde Europeia.

“Se já se conhecem os problemas do sistema, mas ainda assim eles permanecem, está acontecendo uma violência obstétrica mais institucionalizada, pois se permite que a mulher e o bebê passem por uma situação de vulnerabilidade que poderia ter sido evitada,” observa Larissa Velasquez de Souza, chamando atenção também para a importância de se informar profissionais da área e gestantes sobre transformações ocorridas em relação ao tema.

Por Val-André Mutran – de Brasília