Há muitas opiniões e pouca informação quanto aos efeitos reais da Lei Kandir sobre os estados da federação. Análises precipitadas refletem mitos da cultura política brasileira, segundo os quais governos estaduais são tidos como dispendiosos e irresponsáveis. Não estariam buscando formar as bases do desenvolvimento regional, mas atuando contra o desenvolvimento.
Com esse recorte equivocado, não vemos quão diversa é a realidade dos estados brasileiros e quão dura a crise que enfrentam, sobretudo os que foram limitados no acesso à sua maior fonte de renda: o ICMS.
Havia clareza, quando da edição da Lei Kandir, de que estados exportadores de produtos primários e semielaborados perderiam arrecadação de ICMS. Era o preço a pagar para manter o sucesso do jovem Plano Real. Para mitigar esse impacto, foi previsto um sistema de compensações via transferência de recursos da União, algo nunca regulamentado.
Quando a paridade do real ao dólar era uma prioridade, coube aos estados exportadores de commodities —não aos centros industrializados— o dever de manter nossa balança comercial equilibrada. Hoje, eles ainda pagam essa conta: financiam com desonerações o desenvolvimento dos outros.
Há quem diga que as exportações seriam menos volumosas sem a Lei Kandir. A sugestão não sobrevive à análise macroeconômica e despreza variáveis que impactaram a economia nacional desde 1996: câmbio e demanda externa. Após a edição da lei, de 1997 a 2002, exportações nacionais cresceram 14%, de US$ 52,9 bilhões para R$ 60,2 bilhões. Mas insumos industriais e alimentos básicos destinados à indústria, desonerados em 1996, tiveram, respectivamente, desempenho negativo de -5,6% e -11,7%, segundo dados nacionais.
As exportações só tiveram crescimento considerável após 2002, quando o câmbio médio atingiu R$ 3 por US$ 1. Pela perspectiva da demanda, em 2011 o minério de ferro chegou a US$ 187,11 por tonelada —e as exportações paraenses não foram afetadas. No Pará, a lei favoreceu, principalmente, o minério de ferro. Mas certamente a produção de Carajás não deixaria de ser competitiva se fosse taxada adequadamente.
Alguns argumentam que exportações financiam as importações, gerando receita de ICMS. Mas, entre 1997 e 2018, importações nacionais cresceram 205%, e exportações, 325%. No Pará, o descolamento foi maior: importações subiram 174%; exportações, 588%. O resultado foram enormes perdas tributárias.
A reivindicação de recursos pelos estados não é “uma catástrofe”, como dizem alguns, mas a indenização correta pela perda de receita e quebra de autonomia financeira. Na crise atual, a queda de receita gera redução da capacidade de investimento e de honrar despesas. A instabilidade dos estados é problema de toda a federação.
Quem se preocupa com distribuição de renda sabe que é função do poder público usar impostos para dar qualidade de vida à população.
A descentralização de recursos é tema também do governo federal, que prega o fim da concentração nas mãos da União com o lema “mais Brasil, menos Brasília”. Nós queremos aplicar esse lema.
Helder Barbalho
Governador do Pará (MDB), ex-ministro da Integração Nacional (2016-18, governo Temer) e da Secretaria Nacional dos Portos (2015-16, governo Dilma)
Texto publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo, aqui.