Os deputados da base de apoio ao governo comemoraram o “show” do líder e fundador do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), João Pedro Stédile, após sua performance em tomada de depoimento na terça-feira (15), na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga o movimento. Acuada, a oposição se limitou a proferir ofensas pessoais ao depoente, que se saiu como “vítima de quem defende os sem terra da ganância dos latifundiários”.
Ao contrário do que se especulava e do que se temia, Stédile não recebeu voz de prisão, uma vez que a Justiça havia negado o pedido de habeas corpus preventivo, que impedisse sua prisão sob acusação de pelo menos nove tipos penais, mas não foi o que aconteceu.
Ao chegar para a tomada de depoimento, Stédile parecia um ídolo pop chegando a um show num estádio lotado. Houve gritinhos de “viva o MST! Avante a reforma agrária!”, entre outras palavras de ordem previamente ensaiadas. O presidente da CPI, deputado Luciano Zucco (Republicanos-RS), mandou esvaziar o Plenário, determinando a permanência de um assessor por deputado, mais um por liderança e a imprensa credenciada. A Polícia Legislativa conduziu todos os demais para fora da sala, recinto chamado de a Casa do Povo.
Além dos seguidores fiéis que o cultuam como um Messias, o fundador e líder do MST chegou acompanhado de três advogados — dois deles também advogam para o relator da CPI, deputado federal Ricardo Salles (PL-SP), que reponde a vários processos após sua passagem como ministro do Meio Ambiente do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e que ficou célebre após sugerir, numa reunião ministerial do governo anterior aproveitar um momento de crise para: “passar a boiada”, se referindo à flexibilização ainda maior de regras na gestão da fiscalização ambiental, afrouxada na sua administração.
No longo depoimento à CPI do MST, Stédile disse que estava mais preocupado em “discutir o Brasil” do que tratar de pequenas questões e fugiu de responder perguntas do relator, deputado Ricardo Salles (PL-SP). A sessão foi marcada por um duelo entre os dois.
Questionado por Salles sobre a existência da Associação Brasil Popular (Abrapo), que detém o controle sobre o site do MST, assina convênios e recebe recursos públicos em nome do movimento, que o relator disse ter recebido R$ 2 milhões de recursos da União, incluindo repasses da Petrobras e do BNDES, Stédile disse que não sabia dos repasses financeiros a essa associação.
O líder do MST adotou esta conduta, a de não saber de quase nada sobre o que acontece no movimento que fundou. Segundo ele, o MST tem células independentes que obedecem alguns mandamentos e o comando central não teria ingerência sobre o que os líderes regionais fazem ou deixam de fazer.
“Cada acampamento tem autonomia do que faz. Concordo, às vezes eles exageram e erram, mas eles têm o direito de decidir”, afirmou Stédile. Ele alegou que a invasão à Embrapa aconteceu porque era “a área pública mais próxima” e que conseguiram chamar a atenção da opinião pública, sem “destruir nada”.
Naquela data, cerca de 1.500 integrantes de diferentes movimentos invadiram o centro de pesquisas da empresa, ligada ao Ministério da Agricultura porque o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não cumpriu a promessa de destinar áreas para assentar as família acampadas na região.
Stédile admitiu que invadir a fazenda da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) em Petrolina (PE) “foi um erro”. Ele negou ligação do movimento com o PT, em resposta a insistentes perguntas dos deputados de oposição sobre o assunto, mas disse que o agronegócio que não está com Lula “é burro”.
No começo deste ano, como parte de ações do chamado “abril vermelho”, o MST invadiu uma área de preservação ambiental e de pesquisas genéticas da Embrapa em Pernambuco. Após a ocupação, a empresa pública divulgou um comunicado dizendo que a ação era “inaceitável”. Stédile foi questionado na CPI e acabou reconhecendo que o ato foi um equívoco, mas ainda assim tentou justificar a invasão.
Certou ou errado, aliado ou não, o fundador do MST foi premiado com o convite do presidente Lula a compor, como convidado especial, a comitiva presidencial na visita oficial à China, considerado pela oposição como uma prova cabal da ligação entre o movimento e o partido que está no poder.
Durante a tomada de depoimento, Stédile se levantou, sem qualquer cerimônia, para abraçar deputados que iam à mesa diretora dos trabalhos para cumprimenta-lo. Isso ocorreu ao longo do depoimento de mais de cinco horas. Os deputados pró-governo, como PT, PSOL, PCdoB e outros, ocuparam as cadeiras da primeira fila da sala, com bonés vermelhos com a logomarca do MST. Stédile disse que os bonés são obrigatórios, pois “protegem do sol” os militantes da organização. Ele disse que há 600 famílias acampadas esperando seus lotes.
Ao todo, 11 deputados se revezaram no beijão-mão do venerado líder que iniciou sua carreira nas fileiras da Pastoral da Terra, da Igreja Católica, que prega a Teologia da Libertação, ideologia de inspiração marxista e nunca condenada totalmente pelo Vaticano, e que foi, segundo Stédile, “inspiração para a criação do MST”.
Respondendo ao relator sobre o início de sua trajetória, Stédile disse que cursou e se formou em Uconomia na Universidade Federal do Paraná, e disse que não aprendeu nada da matéria na universidade, “embora goste de estatística”.
Em outro questionamento, o relator Ricardo Salles confrontou Stédile sobre acusações de que lideranças de assentamentos se apropriam indevidamente de recursos e não os distribuem para os demais assentados. Stédile disse se tratar de “casos isolados”. O relator contestou. Disse que as falas do depoente não condizem com o que a CPI apurou até o moment
“A descrição que o senhor faz, qualificando isso como exceção, não condiz com as informações que a CPI tem”, afirmou. “[Os relatos] demonstram a prática de líderes se valerem dos liderados para o trabalho enquanto esses ficam com casas melhores, carros melhores e ficam com o resultado desses assentamentos”, afirmou.
“Por que que caíram as invasões no governo Bolsonaro?”, questionou Salles. Stédile justificou a queda pela pandemia de covid-19 e pela postura do próprio ex-presidente. “Era um governo fascista que quer resolver tudo pelo meio da violência. [A invasão] corria o risco de vida”, disse. “Existe MST na China?”, também questionou o relator. “Não. Porque, em 1949, eles fizeram a reforma agrária. Façam a reforma agrária que no dia seguinte desaparece o MST”, desafiou Stédile.
Stédile tentou usar o depoimento para fazer propaganda das ações do MST e criticar setores do agronegócio que segundo ele ainda não se deram conta dos prejuízos que causam. A Aprosoja foi o principal alvo dos ataques. “O agronegócio está dividido. Há a metade que estuda e apoiou Lula. A outra parcela só pensa em ganhar dinheiro. É o agronegócio burro, financiou o 8 de janeiro”, disse. “Aquele agronegócio burro, que só pensa em lucro fácil, está com os dias contados”, previu.
O líder do MST afirmou que políticos ligados a partidos de esquerda como PT e PSOL fazem parte do movimento, mas “não têm ingerência” sobre ele. Os parlamentares associados terão sua ligação indicada no relatório de Salles.
Os parlamentares mais radicais da oposição falaram e não pouparam os ataques. Delegado Éder Mauro (PL-PA) o chamou de “delinquente que invade terras dos outros”, “vagabundo” e bandido”; Evair Vieira de Melo (PP-ES) associou o MST ao narcotráfico. Ambos foram repreendidos por Podval, advogado de Stédile. “Eu não vou aceitar”, disse. Stédile apenas ouviu os ataques enquanto comia uma maçã.
A apresentação do relatório final da CPI do MST, previsto para esta terça-feira (15), foi adiado. Deputados da oposição pretendem fazer diligências na região sul da Bahia antes de encerrar os trabalhos. A visita ao Estado está prevista para o próximo dia 25.
Neste momento, o plano é que esta seja a última ação antes do fim, que deve ocorrer antes do prazo limite, dia 14 de setembro. O Estado da Bahia é uma das principais frentes de investigação da comissão, em que os integrantes apuram o papel da polícia do Estado em desarticular invasões e quais eram os planos do governo para coibi-las. O principal alvo, o ministro da Casa Civil e ex-governador do Estado, Rui Costa, teve a convocação anulada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
Nesta quarta-feira (16), a CPI está tomando o depoimento do secretário de Segurança Pública da Bahia, Marcelo Werner, e o coronel da Polícia Militar baiana, Paulo José Reis de Azevedo Coutinho. O ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, recusou o convite e não participará da audiência que estava agendada na quinta-feira (17), como ele não foi convocado, vai se quiser. Disse que não vai e fica por isso mesmo, em mais um vexame para os oposicionistas.
Preparação da pizza
Na semana passada houve uma reviravolta na condução dos trabalhos da CPI que, ao que tudo indica, vai acabar como as CPIs anteriores do MST: em pizza.
A CPI pode ser encerrada com a rejeição do relatório final. A possibilidade está sendo cogitada nos bastidores da CPI, após manobras de partidos do Centrão que buscam — ávidos por cargos e poder — integrar a base do governo Lula.
Na última semana, a oposição viu a convocação do ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, ser cancelada, com uma atuação inédita de interferência do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e a maioria na composição da CPI ser revertida com a substituição de membros do Progressistas, do Republicanos e do União Brasil candidatos a neo-governistas.
Com as manobras, a oposição ao governo Lula, que busca investigar o propósito dos movimentos de invasão de terra no Brasil e seus financiadores, perdeu o poder de aprovação de requerimentos para convocar membros do governo ou demais depoentes que possam trazer luz ao tema, uma vez que o setor agrícola e pecuário é o único setor com superavit no Produto Interno Bruto (PIB) e sempre é prejudicado com invasões de terras, especialmente as propriedades produtivas e destinadas à pesquisa.
Um pedido de prorrogação do prazo da CPI, que encerra em 14 de setembro, também estava para ser votado. Mas sem maioria nas votações, essa possibilidade já foi descartada pelo relator da CPI. “Nós não podemos querer prorrogar algo cujas pernas foram amputadas numa manobra partidária e política por parte de partidos que querem ingressar no governo”, disse o relator, deputado Ricardo Salles (PL-SP).
Neste cenário, a aprovação do relatório final, com as conclusões da CPI, também ficou comprometida. Salles chegou a cogitar a apresentação do relatório antes do prazo final da CPI, ainda nesta semana. “Com essa configuração da Comissão de agora, nós temos sérias dúvidas se aprovariam um relatório. Então, nós não estamos nem contando com essa hipótese de aprovar o relatório”, disse o deputado.
A história se repete
Nas últimas duas CPIs, de 2016 e 2017, que abordaram o tema das invasões de terra e a demarcação de terras indígenas, havia acordos para que os membros não fossem alterados. Com a relatoria do ex-deputado Nilson Leitão (PSDB), na CPI da Fundação dos Povos Indígenas (Funai) e do Incra 2, encerrada em maio de 2017, o relatório final foi aprovado com o indiciamento de 67 pessoas, entre lideranças indígenas, antropólogos, integrantes de ONGs e servidores.
Já nas duas primeiras comissões que investigaram o MST, as investigações tinham relatores de esquerda. A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Reforma Agrária e Urbana, conhecida como CPMI da Terra, realizada em 2005, por exemplo, teve como relator o deputado João Alfredo (PSOL-CE). No entanto, o relatório aprovado ao final dos trabalhos foi assinado por um dos líderes da bancada do agro da época, o deputado Abelardo Lupion, pai do atual deputado Pedro Lupion (PP-PR), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que reúne os deputados e senadores do agro.
O poder do governo
Com a virada dos acontecimentos da semana passada, sem maioria na CPI do MST, a oposição deve se articular para provocar o maior desgaste possível às lideranças dos movimentos sociais e ao governo durante as próximas reuniões. No entanto, o relatório final da CPI pode ser desfigurado pela atuação dos aliados do governo Lula.
Na votação do relatório, os deputados da base do governo podem apresentar os chamados destaques supressivos, que permitem que qualquer trecho do relatório seja retirado do texto, excluindo até mesmo os depoimentos.
As últimas movimentações na CPI do MST, com o cancelamento da convocação do ministro Rui Costa e a mudança nos membros, ocorreram após a tomada de depoimentos que trouxeram à tona o chamado modus operandi do movimento. Ex-integrantes do MST denunciaram ameaças e agressões que sofreram enquanto faziam parte do movimento. Houve ainda a denúncia de participação de deputados federais na coordenação de atos contra assentados, que teriam ainda empregado em seus gabinetes líderes do movimento que atuam no sul da Bahia.
Com a retirada de trechos ou rejeição do relatório, a CPI perde sua principal função, prevista em lei, que é o encaminhamento da investigação para os órgãos competentes. É importante destacar que as CPIs têm poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, no entanto, não têm poder de julgar, nem competência para punir investigados. A lei diz que, terminados os trabalhos, a comissão deve encaminhar relatório com suas conclusões ao Ministério Público (MP) ou à Advocacia-Geral da União (AGU), a fim de que promovam a responsabilidade civil e criminal dos infratores ou adotem outras medidas legais.
Pacote Invasão Zero também pode ser afetado
Desde o começo da CPI, a oposição articula a apresentação de propostas legislativas visando coibir as ações de movimentos como o MST. O presidente da CPI, deputado Luciano Zucco (Republicanos-RS) chegou a anunciar o “pacote Invasão Zero”, com projetos de lei que dispõe sobre a perda de benefícios de programas sociais a quem invadir propriedades e a classificação como terrorismo dos atos violentos contra propriedades públicas e privadas.Este pacote deve ser apresentado junto do relatório final e, caso seja aprovado pela comissão, terá prioridade de tramitação dentro da Câmara dos Deputados. Sem a aprovação do relatório, o pacote também pode ser comprometido. Mesmo sem aprovação da comissão, os projetos podem ser apresentados individualmente pelos deputados e seguir o trâmite normal de apreciação.
Reportagem: Val-André Mutran – Correspondente do Blog do Zé Dudu em Brasília.