Em 1850, há 173 anos completados em agosto, o estado do Amazonas foi criado a partir da divisão do Pará. De acordo com o historiador Vitor Marcos Gregório, que é professor do Instituto Federal do Paraná (IFPR) e fez uma tese de doutorado sobre a criação das duas províncias, essa medida, no reinado de D. Pedro II, foi motivada por fatores internacionais e domésticos.
De acordo com ele, a Floresta Amazônica brasileira corria o risco de ser invadida pela Inglaterra e pela França. As maiores potências militares da época sonhavam com expandir as colônias da Guiana Inglesa e da Guiana Francesa até as margens do Rio Amazonas, tomando terras do Brasil. Na época, o traçado das fronteiras amazônicas ainda era nebuloso.
Ao mesmo tempo, os Estados Unidos, que já mostravam inclinação ao imperialismo, pressionavam para que a navegação no Rio Amazonas fosse liberada para navios estrangeiros, o que o governo brasileiro não aceitava. Temia-se que os americanos, insatisfeitos, acabassem invadindo a Amazônia.
‘’O governo imperial entendeu que a criação da província do Amazonas iria, por um lado, estimular o povoamento dessa parte da Amazônia e, por outro, levar o poder público e as forças de segurança para perto das fronteiras. Foi uma maneira de proteger a integridade do território nacional’’, afirma Gregório.
Cabanagem
Na esfera doméstica, pesou na decisão de dividir o Pará o trauma da Cabanagem, a maior revolta social da história do Brasil, que explodiu em Belém em 1835 e só acabou em 1840, com um saldo estimado de 40 mil mortos (em torno de 25% da população da Amazônia).
Atribui-se a longa duração da Cabanagem à vastidão territorial do Pará. Grande parte dos insurgentes fugiu para o interior da província, de onde continuou conspirando contra o governo. As autoridades paraenses não dispunham de meios para alcançar os rebeldes embrenhados nos confins da Amazônia.
A criação do Amazonas, portanto, não foi automática nem imediata. O projeto de lei teve de ser discutido e aprovado pela Câmara e pelo Senado e sancionado pelo imperador D. Pedro II. Concomitante com o processo de criação que ocorreu para a criação do Paraná, emancipado de São Paulo.
Os documentos do Arquivo do Senado mostram que, nos dois casos, os debates parlamentares foram acirrados.
Na época, o atual Amazonas correspondia à comarca do Rio Negro. Os defensores da emancipação no Senado argumentaram que a comarca, incrustada na floresta, ficava afastada demais da capital do Pará e só deixaria de ser um vazio demográfico e econômico quando passasse a contar com um governo provincial próprio.
Um desses defensores foi o senador Paula Souza (SP), que afirmou: ‘’É certo que a comarca do Rio Negro existe muito longe da capital da província e por isso lhe podem faltar recursos, mormente não havendo ainda navegação por vapor. A comunicação da capital do Pará a esse lugar é demasiadamente retardada. Creio que é de muitos meses.’’
O senador mineiro Carneiro Leão concordou: ‘’A grande distância que vai da Cidade do Pará à cabeça da comarca do Rio Negro tem demorado todas as providências e feito com que pouco se atenda às necessidades daquela comarca. Acontece muitas vezes que um presidente [cargo equivalente ao de governador] do Pará comunica a sua posse para aqueles lugares e, quando vem a resposta, o presidente já está mudado.’’
Quando algum colega afirmou que criar instituições provinciais e contratar servidores públicos custaria demais aos cofres imperiais, o senador Saturnino da Costa Pereira (MT) pediu a palavra para rebater o argumento. Ele garantiu que os gastos com a emancipação se pagariam em pouco tempo: ‘’Quem não semeia não pode colher. Será mais um suprimento que tenha de fazer o Império enquanto as rendas do Rio Negro não crescerem. Portugal avançou grossos capitais para engrandecer e povoar o Brasil, que lhe era totalmente desconhecido. Portugal e nós, seus descendentes, vemos o lucro que apareceu desse avanço de despesas. Sem essa criação nova [a província do Amazonas], perder-se-á para sempre aquele precioso território, para ser habitado por homens selvagens e feras das matas.’’
Outro defensor da criação do Amazonas, o senador Visconde de Abrantes (CE) disse que a porção ocidental do Pará tinha condições de superar a decadência que amargava no Império, já que vivera momentos áureos no passado: ‘’A comarca ou capitania do Rio Negro, ainda em 1819, exportou o valor de 170 contos de réis fortes em gêneros e produtos que passarei a mencionar: tabaco, salsa, café, cacau, cravo fino, anil, quina, breu, óleo de copaíba, algodão em rama, manteiga de tartaruga etc. Existiam vários estabelecimentos fabris, cujos produtos eram exportados até para o estrangeiro. Havia cordas de muito valor e outros artefatos, inclusive louça para o consumo da província do Pará. A maior parte desses estabelecimentos não existe hoje. Por que, senhores? Porque o Rio Negro não tem sido administrado.’’
Nesse momento, pouco se exploravam as seringueiras. O ciclo da borracha, responsável pelo renascimento da prosperidade amazônica, só ocorreria a partir da década de 1870, para alimentar as fábricas da Europa e dos Estados Unidos na Segunda Revolução Industrial.
No Senado, um parlamentar avaliou que seria inviável criar uma província com tão poucos habitantes. O Visconde de Abrantes discordou: ‘’Não se trata de organizar uma província em sertão absolutamente ermo. A comarca do Rio Negro, pela última estatística, contém 23 mil habitantes livres e calcula-se que as tribos indígenas excedem de 120 mil almas, sendo todas essas tribos de índole pacífica e mui suscetíveis de civilização. Não me parece que deva ser o projeto rejeitado só porque a população não é grande.’’
Recorrendo a uma comparação, o senador prosseguiu: ‘’Quando foi criada a província de Mato Grosso, qual era a sua população? A estatística atual dá para a população livre de Mato Grosso 36 mil almas. E eu pergunto: qual seria a população de Mato Grosso há 40 anos ou na época em que foi elevado em capitania geral ou em província? Hoje deve ter duplicado. As mesmas circunstâncias que levaram o poder de então a organizar ali uma província com tão mesquinha população são as mesmas ou talvez menos poderosas que as que hoje aconselham a elevação do Rio Negro.’’
O contexto internacional
As tensões internacionais também apareceram nos debates parlamentares durante a discussão do projeto de criação da província do Amazonas. O senador Bernardo Pereira de Vasconcelos (MG) apontou o perigo: ‘’Para mim, é indubitável que o governo inglês tem por objetivo apoderar-se do gigante Amazonas e dentro de pouco tempo expelir de suas margens os ribeirinhos, exercer a mais pesada inspeção em todos os barcos, visitá-los, detê-los, capturá-los até a pretexto de negreiros e assim acabar nossa navegação interna, como tem já acabado a de longo curso e a de costa a costa. As folhas [jornais] inglesas não ocultam o pérfido pensamento de seu governo. Elas asseveram que o Amazonas deve pertencer à Inglaterra.’’
O senador Carneiro Leão alertou: ‘’Há pretensões sobre parte do território que atualmente ainda está ocupada por posse, mas essa mesma posse desaparecerá se nós não a tornarmos mais efetiva, procurando guarnecer esses pontos da nossa fronteira, e se não pusermos ali uma administração local que mais depressa possa ser instruída das tentativas de usurpação que se fizerem.’’
Segundo os papéis históricos do Arquivo do Senado, o adversário mais ferrenho da criação do Amazonas foi o senador Vergueiro (MG).
Além de afirmar que a área não tinha população nem arrecadação tributária suficientes para tornar-se autônoma, ele argumentou que a abertura de instituições e repartições governamentais na pequena Vila da Barra do Rio Negro provocaria efeitos colaterais nefastos na alta sociedade local: ‘’Talvez tenha reinado até hoje a paz naquela comarca. Passando a província, hão de se devorar uns aos outros os seus habitantes com intrigas, que é o que acontece nessas províncias pequenas. Uma família quer preponderar e disso resultam rivalidades e depois desordens continuadas, o que não acontece numa província que seja populosa e ao mesmo tempo civilizada. Não sei do estado de civilização do Rio Negro, mas, a avaliar-se a sua civilização pela sua localidade, suponho que não pode estar muito adiantada.’’
Enquanto estudavam o projeto de lei, os senadores receberam duas representações remetidas por autoridades paraenses pedindo a criação do Amazonas — uma assinada pelos vereadores da Câmara Municipal da Vila da Barra do Rio Negro e a outra encaminhada pelos deputados da Assembleia Provincial do Pará.
Com o apoio dos próprios paraenses, o projeto de divisão do Pará foi transformado em lei em 1850 sem enfrentar maiores dificuldades.
O atual Paraná correspondia à comarca paulista de Curitiba e Paranaguá. Para os defensores da emancipação, essa comarca deveria ser elevada a província por já ser desenvolvida e povoada e ter renda suficiente para manter-se por conta própria — argumento diametralmente oposto ao empregado pelos apoiadores da criação do Amazonas.
Em 1850, o senador Batista de Oliveira (CE) apresentou uma emenda ao projeto de lei de emancipação do Amazonas prevendo a separação simultânea do Paraná. Num discurso, ele apresentou seus motivos: ‘’Primeiramente, suponho eu, pelas informações que tenho, que a comarca de Curitiba não só possui uma população maior do que a do Alto Amazonas, como uma indústria mais desenvolvida do que essa parte do território do Pará. Em segundo lugar, a comarca de Curitiba tem um bom porto de mar em Paranaguá, o qual deve muito contribuir para a prosperidade dessa nova província.’’
Ao lado do porto, a grande fonte de renda na comarca de Curitiba e Paranaguá eram os impostos cobrados do gado transportado do Rio Grande do Sul para São Paulo e vendido para toda a província numa feira em Sorocaba. Os animais eram taxados pelas autoridades paulistas assim que entravam no território da comarca.
Na avaliação do senador Carneiro Leão, a região de Curitiba só conseguiria se desenvolver plenamente depois de se separar da província de São Paulo. Ele explicou que a emancipação ainda não havia acontecido porque os seus representantes políticos não eram tão numerosos e poderosos quanto os das demais comarcas paulistas. Ele disse: ‘’Um dos obstáculos à prosperidade da comarca de Curitiba, que está apartada da grande massa da civilização, é a pouca influência que ela tem nas eleições. Não tem meios de se pronunciar para sua elevação a província porque, se na Assembleia Provincial há dois deputados que pertençam a Curitiba, há 33 ou 34 pertencentes a outras localidades que esmagam esse voto legal. Se recorre à Câmara [dos Deputados], raras vezes nela se contempla um curitibano.’’
O senador acrescentou: “Daí provém que, não obstante ser pela província de Curitiba que se arrecada a maior parte da renda da província de São Paulo, ela tem estado quase abandonada. O governo provincial não se ocupa daquela comarca. É por isso que os seus habitantes desejam muito a criação de uma administração local que se cure mais de perto dos seus interesses materiais.’’
Na direção inversa da tomada pelos deputados provinciais do Pará, que apoiaram a criação do Amazonas, a Assembleia Provincial de São Paulo enviou uma representação aos senadores pedindo que não aprovassem a emancipação do Paraná.
Por causa da oposição dos paulistas, a criação do Paraná foi mais difícil e demorada que a do Amazonas. A divisão de São Paulo poderia ter sido aprovada junto com a do Pará, em 1850, mas os debates no Parlamento se estenderam por mais tempo e a aprovação só ocorreu três anos depois.
Vitor Marcos Gregório entende que o processo de criação do Amazonas e do Paraná mostra com clareza que o sistema político representativo, caracterizado por um Poder Legislativo forte e atuante, funcionava plenamente no Brasil já no período imperial: “Apesar de o país ser uma Monarquia e o imperador dispor do Poder Moderador, o monarca não tinha poderes absolutos e ilimitados. A palavra dele não era ordem. Isso era verdade na época do Antigo Regime, do absolutismo. O Brasil colonial era uma propriedade particular do rei de Portugal, que podia dividir e redividir o território ao seu bel-prazer. O Brasil imperial, não. D. Pedro II chegou a pedir ao Parlamento a aprovação da província do São Francisco, mas esse pedido nunca foi atendido. A palavra do partido que estava no poder também não era ordem. O governo precisava negociar com o Senado e a Câmara, que tinham liberdade para aprovar ou rejeitar os projetos de lei.
Ele prossegue: “Se compararmos um mapa do Brasil imperial com um mapa atual, veremos que eles são bastante parecidos. Isso ocorre porque a criação de novas unidades subnacionais não é algo simples e exige muito debate político e negociação. Os parlamentares sempre evitaram mudar no mapa porque sabem que, quando dividem alguma província ou estado, abre-se espaço para que outras unidades passem pelo mesmo processo e a próxima a ser diminuída seja a deles próprios. A tendência é à conservação do território.’’
No Império, os parlamentares também analisaram projetos que previam a criação das províncias do Tocantins, de Minas do Sul, de Minas Novas e do Oiapóquia (correspondente ao atual Amapá). Sem o apoio do Parlamento, nenhum deles vingou.
Gregório afirma que, quando olhamos o mapa do Brasil de hoje, o traçado nos parece natural. Segundo ele, porém, nada tem de espontâneo: “Essa sensação de naturalidade vem, em larga medida, do antigo discurso político que transformou o território, aquele “do Oiapoque ao Chuí”, num elemento decisivo da nossa identidade brasileira, do nosso nacionalismo. Esse discurso também ajuda a explicar a tendência à conservação do traçado do território brasileiro. Quando conhecemos a história da criação do Amazonas, do Paraná e de qualquer outro estado, entendemos que nada foi natural ou fruto do acaso. O território que temos hoje é resultado de cálculos, estratégias, negociações, escolhas, decisões’’, registra.
Carajás e Tapajós
A última tentativa de criação de novos estados no Brasil ocorreu em consulta plebiscitária em 2010, autorizado por um projeto de decreto legislativo aprovado no Congresso Nacional, que consultou toda a população do Pará, a se manifestar sim ou não, sobre a criação de mais dois estados: o Carajás, na porção Sul/Sudeste e o Tapajós, na região Oeste.
Majoritariamente, e diferente das outras duas vezes anteriores quando foram criados, a partir do Pará, o Estado do Amazonas (1850) e o Estado do Amapá (1988), junto com a promulgação da nova Constituição Federal, os leitores do Pará disseram não a uma nova divisão do Pará.
* Reportagem: Val-André Mutran – Correspondente do Blog do Zé Dudu em Brasília.