Lei permite que governos vendam dívidas ao setor privado e recuperem dinheiro dado como perdido

O Projeto de Lei Complementar foi alvo de protestos, mas aprovado pela maioria. Para o deputado Bibo Nunes (PL-RS), é melhor receber logo de quem quiser comprar a dívida, que nunca receber
Após longa discussão da matéria em Plenário, o projeto foi aprovado e vai à sanção presidencial

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O Plenário da Câmara dos Deputados aprovou, na noite de terça-feira (4), sob protestos da oposição e do PSOL, o projeto de lei complementar (PLP n° 4.59/2017) que autoriza a compra, pelo setor privado, de dívidas a serem recebidas pelo poder público. A proposta autoriza a cessão de créditos, seja de impostos ou de outras origens, pertencentes ao governo federal, estados e municípios. A proposta será enviada à sanção presidencial.

Na prática, o texto permite que terceiros comprem essas dívidas com desconto, com autorização do governo federal, dos estados e municípios, o que garante arrecadação imediata de créditos considerados difíceis de serem recebidos ou que só seriam pagos no futuro. Essa securitização é uma espécie de venda com deságio dos direitos de receber uma dívida, tributária ou não.

O PLP n° 4.59/2017, do Senado, prevê que a operação de venda da dívida ao setor privado será considerada operação de venda definitiva de patrimônio público e não uma operação de crédito. Essa operação de crédito é proibida pela Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n° 101/2000).

O relator do projeto em Plenário, deputado Alex Manente (Cidadania-SP), afirmou que a proposta dá à União, aos estados e aos municípios capacidade de investimento sem gerar ou aumentar impostos, além de fazer com que o poder público tenha capacidade de investimento com valores recebíveis que não foram pagos. “Entes e subentes têm algo em torno de R$ 5 trilhões a receber. Esse dinheiro é dificilmente recuperado pelo modelo que existe atualmente”, explicou.

O texto proíbe cada ente federado de “vender a dívida” na parcela que cabe a outro ente por força de regras constitucionais de repartição de tributos, como, por exemplo, o ICMS dos estados com os municípios de seu território e o Imposto de Renda e o IPI da União com estados e municípios.

Do total de recursos obtidos com a cessão dos direitos sobre os créditos da administração, 50% serão direcionados a despesas associadas a regime de previdência social e a outra metade a despesas com investimentos. Essa regra consta da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Sociedade de Propósito Específico

Uma das formas, a mais usual, de se realizar essa transação é a criação de uma sociedade de propósito específico (SPE) pelo ente federado que vai ceder os créditos. Essa cessão à SPE poderá ser feita com dispensa de licitação.

O próximo passo é a SPE emitir títulos que representam parcelas da dívida, geralmente misturando dívidas com mais potencial de pagamento com outras de menor potencial de quitação com o objetivo de equilibrar o risco para o investidor.

Conforme o devedor do débito for pagando o parcelamento, parte desse dinheiro fica com o investidor comprador do título representativo da dívida e outra parte vai para a administração (deságio).

Quanto maior for a antecipação da receita proposta pelo investidor à SPE, maior pode ser o deságio para cobrir o risco de não receber a dívida parcelada. Podem ser incluídas na transação de créditos as dívidas parceladas administrativamente, por parcelamento legal e judicial. De qualquer forma, podem ser objeto da securitização apenas os créditos já constituídos e reconhecidos pelo devedor ou contribuinte.

Outras possibilidades

Outro formato possível é o pagamento de juros pelo dinheiro antecipado pelo comprador ao ente federado. Esses juros seriam pagos pela SPE conforme a realização dos pagamentos dos devedores ao longo do período do parcelamento, por exemplo.

Contudo, o questionamento jurídico desse formato tem mais força porque esse mecanismo é mais próximo da proibida operação de crédito.

Condições

O projeto estipula várias condições para ocorrer a cessão dos créditos ou securitização. Todos os critérios vinculados deverão permanecer os mesmos, como índices de atualização, de juros e multa, condições de pagamento e de vencimento e outros termos porventura convencionados entre a Fazenda Pública e o devedor.

O contrato de cessão de créditos deverá garantir à Fazenda ou a órgão da administração pública (Procuradoria Fazendária, por exemplo) a prerrogativa de cobrança judicial e extrajudicial dos créditos que ampararam a emissão dos títulos vendidos pela SPE.

Após a concretização da operação, o cedente (Fazenda ou Procuradoria Fazendária) será isento de responsabilidade, compromisso ou dívida decorrente da obrigação de pagamento do contribuinte perante o cessionário (investidor que comprou os títulos representativos da dívida).

Dessa maneira, o risco de não pagamento pelo devedor é transferido ao investidor. Risco este amortizado pelo deságio (valor menor a repassar à administração) e minimizado pela mistura de créditos de mais risco com créditos de menor risco.

Lei específica

Entretanto, não há no projeto qualquer restrição à cessão apenas de créditos com grande potencial de serem honrados pelo devedor. Isso será definido por uma lei específica (Projeto de Lei Complementar) de cada ente federado.

Outra restrição imposta pelo projeto é que a securitização não poderá ser feita nos 90 dias anteriores ao fim do mandato do Poder Executivo, exceto se o pagamento integral vinculado aos títulos emitidos ocorra após essa data.

No caso de créditos originados de parcelamentos administrativos não inscritos em dívida ativa, a securitização poderá ocorrer somente sobre o estoque existente até a data de publicação da futura lei do ente federado que conceder autorização para isso.

Bancos estatais

Bancos estatais não poderão comprar os títulos representativos da dívida a receber pelo ente federado e tampouco adquirir ou negociá-los em mercado secundário ou realizar operação lastreada ou garantida por esses títulos.

O projeto reserva a esses bancos, entretanto, a possibilidade de participarem da estruturação financeira da operação, atuando como prestador de serviços.

Informações

Para facilitar o processo de montagem dos títulos representativos da dívida cedida, o projeto permite o uso de informações que melhor caracterizem o risco de cada devedor. Essas informações poderão ser requisitadas pela administração tributária, sejam de natureza cadastral ou patrimonial, perante órgãos e entidades públicos e privados, inclusive aqueles que têm obrigação legal de operar cadastros, registros e controlar operações de bens e direitos (cartórios, por exemplo).

O projeto determina que todos os órgãos e entidades da administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes deverão colaborar com a administração tributária nessa troca de informações.

Cessões anteriores

Securitizações feitas anteriormente à lei complementar, como as dos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, permanecerão regidas pelas leis respectivas.

Debate em Plenário

A sessão teve longos discursos contra e a favor do projeto. Deputados do Novo e do PSOL foram contrários à proposta. Para o deputado Gilson Marques (Novo-SC), o projeto tenta resolver um problema de agora comprometendo o futuro. “É óbvio que o governante de agora concorda com isso, porque ele pode utilizar esses recursos. Qual a responsabilidade desta geração com as gerações seguintes?”, questionou.

Para a deputada Fernanda Melchionna (PSOL-RS), a proposta estabelece uma lógica perversa para os recursos públicos, criando o mercado da dívida. “Aqui se cria um negócio onde os lucros são privados e sem transparência, com dinheiro público, comprometendo as futuras gerações e com muita dificuldade para que os movimentos sociais possam denunciar.”

Já o deputado Mauro Benevides Filho (PDT-CE) afirmou que as procuradorias da União, dos estados e dos municípios não conseguem recuperar créditos em dívida ativa. “A PGFN, que se diz a procuradoria mais eficiente, só arrecada 1% do total da dívida ativa. Se for falar de estados e municípios, cai mais, 0,7% ou 0,8%. As procuradorias não recebem esse dinheiro”, alertou.

Mauro Benevides Filho disse que o “charme” do projeto é isentar o poder público de compromisso ou dívida, caso o credor não pague a quem adquiriu a dívida pública. “Não tem nada a ver de abrir mão de dinheiro, isso é tudo sem fundamentação”, declarou.

O deputado Tarcísio Motta (Psol-RJ) afirmou que a ineficiência do Estado em cobrar a dívida não pode ser argumento para a proposta. “O que deveríamos aprimorar é a eficiência do Estado, e não dizer que o privado vai cobrar a dívida com mais eficiência”, disse.

Motta também criticou o discurso de parlamentares e de parte do governo sobre responsabilidade fiscal. “Na hora do investimento, a palavra é responsabilidade. Na hora da dívida, deixemos a dívida rolar solta porque ela traz benefícios para o mercado especulador de capitais. Este projeto só interessa a eles.”

Já o líder do PSB, deputado Gervásio Maia (PB), destacou que a pauta foi uma das solicitadas na Marcha dos Prefeitos deste ano. “Votar sim é facilitar e ampliar a capacidade de arrecadação de estados e municípios.”

Para o deputado Bibo Nunes (PL-RS), melhor é receber [de quem vai comprar a dívida] do que não ter nunca os recursos [de devedore que se recusam a pagar]. “Tem alguém que lhe deve e que não vai pagar nunca. Você prefere receber, com liquidez inclusive [ou não receber]? Vários governadores querem, e eu, como gaúcho, também quero liquidez”, afirmou.

* Reportagem: Val-André Mutran – Correspondente do Blog do Zé Dudu em Brasília.