Por Edson Vidigal (*)
Quando as coisas sempre dão certo para uma pessoa logo se diz que ela tem muita sorte. Muitas vezes nem sempre é assim.
Mas como as coisas que dão certo acabam obtendo uma repercussão descomunal, as coisas que não dão certo praticamente somem afogadas pelas ondas dos falatórios a favor.
Pratica-se muito aquela máxima de que em politica, por exemplo, o que vale não é o fato, mas a repercussão que se lhe dê.
Ou seja, o fato pode até conter muitas verdades, mas o que vai interessar mesmo será a versão final a ser disseminada.
Isto quer dizer que essa versão final para ser apresentada de forma atraente pode ser fantasiosa, recheada com mentiras, as mais descaradas.
E assim vão se forjando os mitos que se não conseguirem ficar bem na foto da história, pelo menos já tem espaços cativos no cotidiano das indecorosidades, posando de invencíveis.
Não estou certo que a palavra certa para um começo de compreensão dessa coisa seja cinismo. Digo que não estou certo porque a palavra cinismo não diz tudo.
O cinismo, originariamente, era uma doutrina filosófica na Grécia antiga. Os cínicos buscavam a felicidade na vida simples em sintonia com a natureza, desprezando riquezas, confortos, tendo como parâmetro dessas virtudes o jeito de ser dos cachorros.
Então quando se diz hoje que alguém é cínico está se dizendo que ele não tem compromissos com as regras sociais nem com a moral vigente, ou seja, é um descarado.
Daí que para algumas pessoas esse negocio de agir com cinismo chega a ser uma constante, quase sempre uma característica, algo já inoculado ao caráter.
A vida em sociedade impõe regras morais e éticas e regras legais, o que significa que todos nós estamos sujeitos a limites.
Cada um na sua função, uns como políticos, outros como juízes, todos como cidadãos, cada um está adstrito aos seus próprios limites.
Mas quando nessa sociedade de regras morais e éticas e de regras legais vem um e transgride e nada lhe acontece, nenhuma sanção lhe é imposta, ele se julga imunizado pela impunidade para poder continuar transgredindo.
Não demora e passa a ser uma pessoa temida, poderosa. Outros transgressores, de menor potencialidade, vão se juntando a ele, na crença de que vão ter sua proteção.
Mostrando união, exibem força e o chefão poderoso passa a ser mais temido. Os medrosos por natureza ou por ocasionais interesses, pelo sim, pelo não, aderem ou se calam.
Vai se formando o mito da invencibilidade. A impunidade deixa de ser a omissão da polícia ou a fraqueza conivente dos julgadores para se transformar em graça divina, – a sorte, justificativa única de tudo.
Olha aqui, amiga, amigo, – tudo na vida um dia acaba. Estrela brilhante se apaga, a lua tem suas fases e numa dessas uma nuvem pode tirar da reta lunar o orifício sortudo. Se é pacto com diabo, é bom lembrar que nessas parcerias nunca ninguém ganhou.
A impunidade cansada de carregar tudo sozinha nesses tempos todos já começa a sair fora. E se acham que é sorte, é bom não abusar.
( * ) – Edson Vidigal é ex-presidente do STJ e professor de Direito na UFMA. Texto originalmente publicado no site Migalhas.