Morreu, nesta quarta-feira (23), um dos mais importantes intelectuais do Brasil. Aos 79 anos, Antonio Cicero, imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), poeta, compositor, escritor e filósofo, foi submetido a um procedimento de eutanásia em uma clínica na Suíça, para onde viajou na semana passada. O procedimento é proibido no Brasil.
Ele estava acompanhado do marido, Marcelo Pies. Em comunicado a pessoas próximas, Pies relata que o poeta vinha planejando a morte assistida há um tempo e mandando documentos, mas “insistiu muito que ninguém soubesse”. Ele já havia sido diagnosticado com Alzheimer. Dias antes, Cicero visitou Paris por alguns dias para se despedir da cidade que tanto admirava. O imortal da ABL fez questão de ser cremado, e suas cinzas serão trazidas por seu marido ao Brasil, que desembarca nesta quinta-feira (24).
Recluso depois do agravamento do Alzheimer e sérios problemas neurológicos dele decorrentes, Antonio Cicero fez sua última aparição pública no Rio de Janeiro, em 30 de setembro, quando prestigiou o lançamento do novo livro de Silviano Santiago, numa livraria em Ipanema.
Ele deixou uma carta de despedida (leia a íntegra ao final), na qual afirma: “Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia”, e diz aos amigos que, “hoje, do jeito em que me encontro, fico até com vergonha de reencontrá-los”, em alusão ao seu estado de saúde.
Legislação brasileira proíbe a eutanásia e morte assistida
A eutanásia e o suicídio assistido são práticas que envolvem o ato voluntário de morrer sem dor e com assistência médica. Ambas as medidas são regidas por diversas regras, diferentes em cada país onde são permitidas. No Brasil, as alternativas são proibidas e consideradas crimes.
Na Suíça, embora o termo eutanásia seja utilizado de forma ampla, a lei na realidade permite apenas o suicídio assistido, ou seja, em que o próprio paciente administra a substância letal. O país é conhecido por ter sido o primeiro a permitir a prática, ainda em 1942, e por ter uma das legislações mais liberais sobre o assunto.
A liberação ocorreu após o artigo 115 do Código Penal da Suíça estabelecer que incitar ou ajudar outra pessoa a cometer ou tentar cometer suicídio é crime apenas quando acontece “por motivos egoístas”. Na prática, o texto passou a permitir o suicídio assistido até mesmo de estrangeiros, o que atrai diversas pessoas todo ano ao país em busca do procedimento, como foi o caso do poeta.
Os critérios e a permissão para o procedimento costumam depender da organização que está prestando o serviço, como a Dignitas, Pegasus e outras que surgiram no país para auxiliar pacientes, assim como do médico que vai prescrever a substância. Geralmente, é feita uma longa análise de laudos médicos, consultas e outros documentos.
Quais países permitem a eutanásia e o suicídio assistido?
Segundo um levantamento recente da Associação Médica Britânica (BMA), cerca de dez outros países além da Suíça permitem de alguma forma a eutanásia ou o suicídio assistido, além de alguns estados dos Estados Unidos e da Austrália. A maior parte localizada na Europa.
Na Espanha, Holanda, Luxemburgo, Bélgica, Canadá e na Nova Zelândia, as duas práticas podem ser realizadas. Na Áustria, apenas o suicídio assistido é permitido. Na Colômbia, Itália e Alemanha, não há uma legislação permitindo, porém a Justiça já entendeu em decisões recentes que o médico não pode ser punido por auxiliar um paciente no suicídio em casos específicos.
Obra e atuação cultural relevantes
Canções como Fulgás, Para Começar e À Francesa – as duas primeiras em parceria com sua irmã, a cantora e compositora Marina Lima, e a última com Cláudio Zoli, embalaram as rádios nos Anos 80. A partir de então, Cicero tornar-se-ia um dos mais próximos parceiros de Marina. Entre outras parcerias, destacam-se aquelas com Waly Salomão, João Bosco, Orlando Morais, Adriana Calcanhotto e Lulu Santos (co-autor, junto com Antonio Cicero e Sérgio Souza, do hit O Último Romântico, de 1984).
De 1991 a 1992, Antonio Cicero coordenou, em colaboração com o poeta e professor de Filosofia da Universidade Federal Fluminense Alex Varella, os cursos de Estética e Teoria da Arte do Galpão do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ).
Em 1993, concebeu, em colaboração com o poeta Waly Salomão e com o patrocínio do Banco Nacional, o projeto “Banco Nacional de Ideias”, através do qual, naquele ano e nos dois subsequentes, promoveu ciclos de conferências e discussões de artistas e intelectuais de importância mundial, como João Cabral de Melo Neto, Haroldo de Campos, John Ashbery, Derek Walcott, Caetano Veloso, Richard Rorty, Tzvetan Todorov, Hans Magnus Enzensberger, Peter Sloterdijk, Ernest Gellner, Bento Prado Júnior e Darcy Ribeiro, entre outros.
Em 1994, organizou, em parceria com Salomão, o livro “O relativismo enquanto visão do mundo”, que reúne as conferências realizadas pelo projeto Banco Nacional de Ideias nesse ano.
Em 1995, publicou O Mundo Desde o Fim, uma reflexão filosófica sobre a modernidade. Em 1996, lançou o livro de poemas “Guardar”, vencedor do Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira na categoria estreante. Lançou também um CD, “Antonio Cicero por Antonio Cicero”, onde recita seus poemas.
Em 2001, seu poema “Guardar” foi incluído na antologia “Os cem melhores poemas brasileiros do século”, organizada por Ítalo Moriconi.
Prossegue nos anos seguintes em intensa atividade intelectual, até ser eleito, no dia 10 de agosto 2017, para a cadeira 27 da Academia Brasileira de Letras (ABL), sucedendo Eduardo Portella, morto no dia 3 de maio deste ano.
“Antonio Cicero é um dos escritores mais representativos da literatura brasileira contemporânea”, declarou o presidente da ABL, acadêmico Domício Proença Filho. Cicero foi eleito por 30 votos. Concorreram na eleição 22 acadêmicos – 12 por cartas. Antes de Cicero, os ocupantes anteriores da cadeira 27 foram: Joaquim Nabuco – fundador da cadeira e que escolheu como patrono Maciel Monteiro, Dantas Barreto, Gregório da Fonseca, Levi Carneiro e Otávio de Faria (CEO e editor-chefe do jornal Folha de S. Paulo).
Após ser diagnosticado com a Doença de Alzheimer, o poeta tomou a decisão de praticar morte assistida, por esse motivo transferindo-se para a Suíça, onde tal prática é legalizada. Lá, o procedimento foi realizado, sendo o falecimento do escritor anunciado em 23 de outubro de 2024.
Leia a carta deixada pelo poeta:
Queridos amigos,
Encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia.
O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de
Alzheimer.
Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas
no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem.
Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas
pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi.
Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia.
Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu
mais gostava no mundo.
Apesar de tudo isso, ainda estou lúcido bastante para reconhecer minha
terrível situação.
A convivência com vocês, meus amigos, era uma das coisas – senão a coisa
– mais importante da minha vida. Hoje, do jeito em que me encontro, fico
até com vergonha de reencontrá-los.
Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que
quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo.
Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade.
Eu os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços!
Por Val-André Mutran – de Brasília