O processo de licenciamento da hidrovia Tocantins-Araguaia violou reiteradamente os direitos humanos das comunidades tradicionais, os tratados internacionais e a Constituição brasileira. É o que dizem os procuradores da República do MPF do Pará, em reunião com as comunidades afetadas pela obra. A implementação da hidrovia Tocantins-Araguaia é uma das obras contempladas pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
A instalação da hidrovia prevê explosões de rochas de um trecho de 43 quilômetros chamado Pedral do Lourenço, no sudeste do Pará, e dragagem da calha do rio para permitir a navegabilidade na época de estiagem. O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) pretende explodir o Pedral já em 2024. A obra será realizada pela DTA Engenharia. A licença para o chamado “derrocamento” foi dada pelo Ibama em outubro de 2022, em pleno segundo turno da campanha presidencial. Em março, o MPF recomendou a suspensão da licença.
Para os procuradores reunidos em seis encontros realizados em novembro do ano passado – incluindo um seminário técnico, realizado em 9 de novembro, e as audiências públicas em Marabá (21/11) e Tucuruí (25/11), seguida de 3 reuniões complementares, em Mocajuba, Tucuruí, e na Vila Tauiry –, o licenciamento da hidrovia lembra os erros cometidos em outra grande obra ocorrida no Pará, a da Usina de Belo Monte.
“Todos os impactos que a usina [Belo Monte] causou sobre os modos de vida [se repetem], parece que estas lições não foram apreendidas”, disse o procurador Sadi Flores Machado, no seminário técnico realizado no dia 9 de novembro. “Eu lembrava também deste livro da Eliane Brum [erguendo o livro O Brasil, construtor de ruínas]. Ela [a autora] tem uma frase que eu achei muito interessante justamente por conta deste aspecto geográfico simbólico do Pedral. Ela diz: ‘O Brasil é um construtor de ruínas. O Brasil constrói ruínas em dimensões continentais’. E estas ruínas não vão ser só do aspecto ambiental propriamente dito, mas também sobre o aspecto social”, reforçou o procurador.
Nas reuniões que sucederam o seminário técnico, Machado repetiu que os procedimentos adotados pela DTA Engenharia, empreiteira contratada pelo DNIT para realizar os estudos e futura explosão da formação rochosa existente no Rio Tocantins, vem “repetindo os erros do Belo Monte”, com erros e falhas nos estudos que “muitas vezes são propositais”, além da falta de consulta prévia, livre e informada às populações afetadas, como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.
Data improvável
Na audiência pública realizada em Tucuruí, no dia 25 de novembro, os procuradores esclareceram que seria impossível, de maneira legal, começar a explodir o Rio Tocantins em março de 2024, como o DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) havia anunciado em setembro.
A obra atualmente considerada nos estudos ambientais seria o primeiro trecho da hidrovia do Tocantins-Araguaia, entre Marabá (PA) e Barcarena (PA). A proposta consiste em realizar explosões por dois anos e meio nas rochas localizadas nos quilômetros 35-43 do Pedral do Lourenço. Pesquisadores e pescadores descrevem esse Pedral como um santuário rochoso de peixes no meio do Rio Tocantins, tendo a maior área de pesca no montante (região anterior) da barragem de Tucuruí, com importância pesqueira e econômica para a região e outros estados.
“A gente fez uma audiência pública lá em Marabá com Ibama, com DNIT. E não tem programação oficial para esta obra acontecer em março [aplausos da plateia]. Pelo contrário, tem muitas condicionantes pendentes, condicionantes da licença prévia, que é o primeiro ato para poder continuar os estudos, foi aprovada com muitos condicionantes pendentes. E um dos primeiros atos que foi tomado nesta rodada [do MPF em novembro] foi de programar que Ibama não expeça a nova parte da licença, a licença de instalação, sem cumprir todas as condicionantes que ficaram pendentes, para além das condicionantes novas, que a gente considera que existem. Isso leva um tempo. O próprio DNIT sabe que precisa de tempo para fazer estudos já pendentes que não podem começar antes de março”, explicou o procurador da República Igor Spindola na audiência pública realizada na reunião complementar do MPF em Mocajuba em 24 de novembro.
Uma das condicionantes é um programa piloto de explodir uma parte pequena de rochas no Pedral para mensurar os efeitos. “Para a obra sair em março, acredito que é muita especulação, inclusive para gerar este tema de medo e desinformação, que as pessoas ficam necessariamente, se sentem acuadas, para aceitar uma compensação que nem existe nesta fase”, falou.
O empreendimento recebeu licença prévia em outubro, com condicionantes. O canteiro de obras para o projeto de explosão do pedral, pelos planos do DNIT, será implantado na Vila Tauiry, comunidade ribeirinha localizada no município de Itupiranga.
No dia 25 de novembro, durante uma audiência pública sobre a hidrovia realizada em Tucuruí, o procurador Sadi Flores Machado cobrou do DNIT e do Ibama a correção das violações. Ele também enfatizou a necessidade de, de agora em diante, em cada assunto ou ação relacionado às comunidades, realizar a consulta prévia, livre e informada às comunidades afetadas antes de tomar qualquer ação ou decisão.
“Existem aspetos deste procedimento, realizados até aqui, que violaram os termos da Convenção 169. Isso não significa que daqui para a frente a Convenção 169 não pode e não deve ser seguida. Ou seja, o fato de não ter sido respeitado previamente não significa que o Estado está dispensado de respeitá-la daqui para a frente. A consulta prévia, livre e informada tem que ser realizada antes de cada ato que possa impactar [os povos e comunidades tradicionais], e tem que considerar inclusive os novos aspetos que vão surgindo”, afirmou Machado.
O procurador identificou ainda o entendimento errado da DTA Engenharia, empresa contratada para realizar a obra – o empreendedor, no jargão técnico – e que esteve presente nas audiências públicas. “Agradeço mais uma vez as falas da Ana Claudia [Abreu, da DTA, coordenadora dos estudos ambientais], mas tem que apontar aqui que não se trata de ‘a gente vai avisando [as comunidades atingidas]’. Não. A gente vai ter que ir consultando cada vez”, frisou.
Sobre as violações da Convenção 169, o procurador invocou o poder da corte internacional. “O Estado brasileiro se submeteu voluntariamente aos termos da judicialização da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Na Corte Interamericana, nós temos pelo menos 4 casos que estabelecem parâmetros a respeito do processo de consulta”. A convenção foi internalizada como parte da Constituição brasileira, ele explicou, e o MPF é obrigado a aplicar as leis internacionais e nacionais.
“Eu conclamo aqui as instituições presentes, DNIT, Ibama, que nós possamos estreitar esse diálogo para que esses erros que já foram cometidos possam ser corrigidos, que eles não prossigam”, reforçou.
Abordando estes erros dos órgãos, ao final, o procurador ofereceu “um ato simbólico” de pedir desculpas das comunidades pelas ilegalidades no licenciamento. “O Ministério Público Federal é independente, mas ainda assim, como agente público, eu queria formalizar um ato público de pedir desculpas pela violação de direitos humanos que o estado brasileiro tem realizado ao longo desses anos em relação a esse licenciamento”, afirmou. “É importante lembrar que esse caráter simbólico visa, justamente, que a violação não se repita. Então, quando se pede desculpas, a gente está dizendo para o outro que nós vamos adotar todas as cautelas para que isto de fato não ocorra mais”, garantiu Machado.