Bota, fivela, chapelão de couro. No multimídia de última geração da caminhonete traçada, um sertanejo para relembrar aquele churrasco do último final de semana, regado a muita cerveja gelada e a muito barulho disperso em vários carros nada populares tocando as músicas da moda. Todo arrumado, o homem do campo, cada vez mais urbano e conectado, fala de negócios e de mais uma vaca que pariu. É mais bezerro no pasto, para gerar renda e pagar combustíveis e impostos de dois carros de luxo e uma moto na garagem.
Não, não é em Goiás. É no sul do Pará, onde os ricaços do setor agropecuário vindos do Centro-Sul construíram e inauguraram, ao longo de décadas, uma dinâmica progressista de grandes frotas de veículos por pessoa que é tradição em lugares com apelo caipira, como Goiás, Minas Gerais, São Paulo e Mato Grosso, estados com, aliás, elevado grau de desenvolvimento social e renda per capita crescente.
Esses costumes que se entrecruzam numa porção paraense onde o sotaque com uso de “r dobrado” lembra o falar goiano e destoa completamente do “s chiado”, herança franco-lusitana no Pará das águas, cujo cinturão vai das regiões costeira e metropolitana a Santarém, via Rio Amazonas, finca a bandeira do migrante e revela seu apego aos veículos automotores.
Redenção, Xinguara e Tucumã são os municípios paraenses com a maior densidade de carro por habitante do Pará, com números até melhores que muitos lugares desenvolvidos, como os municípios do interior goiano. Não por acaso, eles são os municípios com maior presença de população de Goiás no estado.
O Blog do Zé Dudu cruzou dados da frota de junho, do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), com os da estimativa populacional divulgada ontem (28) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com referência a 1º de julho e concluiu que, quanto mais ao sul do estado, mais carros e motos se tem à vista. E se nas microrregiões de Marabá e Parauapebas há forte presença de maranhenses, em microrregiões como Redenção e São Félix do Xingu os goianos falam mais alto depois dos paraenses.
Gado, pasto e prosperidade
Celeiros de gado respeitados e, mais recentemente, fronteiras de expansão de soja, Redenção, Xinguara e Tucumã têm em comum, segundo o IBGE, a presença de ao menos um goiano em cada grupo de dez moradores. A proporção já foi muito maior, principalmente no início da década de 1990, mas os paraenses nascidos nesses municípios descentes dos migrantes cresceram muito e já superam os 60%.
O povo goiano trouxe desenvolvimento ao sul do estado, onde hoje muitos municípios ostentam indicadores de escolaridade e renda muito acima da média do estado. Em termos de desenvolvimento humano, Redenção, Tucumã e Xinguara sempre se posicionam entre os 20 melhores do Pará. E só não chegam ao topo justamente porque a prosperidade cobra o preço e nunca está só: atrai muitos migrantes desempregados, sobretudo da Região Nordeste, que avolumam os indicadores locais de pobreza.
Ainda assim, os bons indicadores sociais decifram a xarada de os três municípios possuírem as mais altas médias de veículo por habitante. A renda elevada de comerciantes e pecuaristas garante o bom desempenho. Nesses municípios, em que não há dependência de empresa “x” ou “y”, quem é rico é rico mesmo: tem dinheiro no banco e boi no pasto. Há muitos fazendeiros bem sucedidos multidomiciliados (em Goiás e no Pará) e é tudo muito bem definido, sem forçação de barra para alpinismo social.
Não por acaso, Redenção é, disparado, o lugar proporcionalmente campeão em caminhonetes. O município tem quase a mesma quantidade desses veículos que Ananindeua, cuja população é seis vezes maior. No total, a principal praça financeira do sul do estado tem 62,3 mil carros e motos em circulação, tendo emplacado 1,3 mil novas unidades apenas nos primeiros seis meses deste ano. Distribuindo tantos veículos para os quase 85 mil habitantes estimados pelo IBGE, dá uma unidade sobre rodas para cada 1,36 morador. É muito próximo à capital de Goiás, Goiânia, onde há quase 1,2 milhão de veículos em circulação, média de um para cada 1,27 morador.
Em Tucumã, a média é de um veículo para cada 1,53 habitante, enquanto Xinguara vem na sequência com um para 1,53 pessoa. Além dos três, no pelotão das dez médias mais altas, ainda tem um vizinho deles, Rio Maria, na 8ª posição, com um veículo para 2,27 moradores.
Últimos colocados nacionais
Nem os riquíssimos e prósperos municípios de Carajás — Canaã dos Carajás, Parauapebas e Marabá — conseguem dominar o pódio, embora apareçam entre os dez primeiros colocados. Canaã dos Carajás, na 6ª posição, tem um veículo para 1,92 habitante. Parauapebas, na 7ª, tem um para 2,17 pessoas. E Marabá, na 10ª, ostenta um veículo para 2,38 moradores. Os números de Canaã e Parauapebas devem piorar e até tirá-los do grupo dos dez porque, sabidamente, a população atual residente é superior à estimativa oficial do IBGE — o que fatalmente será comprovado por meio do recenseamento do próprio IBGE ano que vem.
No extremo dessa realidade de tantos faróis e buzinas ativos, os municípios do Marajó, por conta das particularidades geográficas da ilha, têm as menores frotas do Brasil. E também estão entre os mais pobres do país. Afuá, que virou notícia no Globo Repórter na semana passada justamente pela pequena frota de carros e elevado tráfego de bicicletas, é o campeão nacional no quesito menos carro por habitante: só tem 15, o que dá uma média de um para 2.614 habitantes. Em Chaves, a média é de um veículo para 1.129 moradores.
Embora muita frota em circulação não implique necessariamente nem seja parâmetro adequado de desenvolvimento (e pode até mascarar a pobreza, com poucos detendo muitos carros e muitos sem acesso sequer a transporte público), os municípios do sul do Pará levam vantagem na consolidação e autonomia de suas economias, baseadas em forte tradição agropecuária que movimenta riqueza local e eleva a qualidade de vida.