Brasília – Entram em vigor nesta terça-feira (2), as novas regras para o rotativo do cartão de crédito, aprovadas no final de dezembro pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). A partir de agora, os juros cobrados no rotativo e nos parcelamentos do cartão não poderão exceder 100% do valor da dívida original.
Em sua última reunião do ano, o colegiado regulamentou trecho inserido na lei do Desenrola, que foi sancionada em 3 de outubro e deu 90 dias para que o mercado apresentasse e o CMN aprovasse limites para as taxas de juros. Caso contrário, o total cobrado a título de juros e encargos financeiros não poderia ultrapassar o valor do principal da dívida.
Sem consenso no setor sobre uma alternativa à lei, o colegiado apenas detalhou o funcionamento do teto. Embora não tenha tomado outras medidas mais estruturais, o Banco Central (BC) aproveitou a ocasião e também divulgou novas regras sobre portabilidade no cartão, aumento da transparência na fatura e ações de educação financeira.
Entenda as mudanças feitas pelo regulador, em que contexto as medidas foram tomadas e quais discussões podem se estender para 2024.
O que diz a regra?
Conforme previsto em lei, os juros cobrados nos financiamentos do cartão de crédito (incluindo rotativo e parcelado) terão um teto e não poderão ultrapassar 100% do valor original da dívida. Por exemplo, se R$ 1.000 entraram no rotativo, o banco poderá cobrar, ao todo, outros R$ 1.000 em juros e encargos. Desde 2017, uma regra do BC impede o cliente de ficar mais de 30 dias no rotativo. Depois desse período, a instituição é obrigada a oferecer outra linha, com condições mais atrativas.
Pela regulamentação, o teto incluirá não só os juros remuneratórios, mas também juros de mora, multa moratória, tarifas e comissões incidentes à operação de crédito — o que contrariou o entendimento inicial dos bancos. Não foi estabelecido nenhum tipo de prazo para o crescimento da dívida e o consequente atingimento do teto de 100%.
A nova regra só vale para quem ingressar no rotativo a partir do dia 2 de janeiro de 2024.
Houve mudanças no parcelado sem juros?
Não. Embora ao longo de todo o debate bancos tenham demandado a limitação do parcelado sem juros, alegando que a dinâmica atual traz desequilíbrios ao sistema, com os riscos sendo assumidos apenas pelos emissores, o CMN não propôs mudanças nessa área.
Apesar disso, há relatos no mercado de que o BC poderia soltar uma consulta pública já no início de 2024 para discutir uma eventual limitação do parcelado sem juros. Alguns participantes das discussões observam que parte da diretoria da autoridade monetária é favorável a mudanças na modalidade e, por isso, o assunto deve ser mantido no radar.
A mudança no rotativo resolve o problema dos juros altos?
Analistas e participantes da indústria dizem que as novas regras não resolvem integralmente o problema dos juros elevados e a “bola de neve” criada pelo mau uso do cartão. Assim, eles acreditam que o produto ainda precisará ser revisto no futuro.
Escritórios de advocacia especializados nesse setor dizem que a regulamentação do teto pode até ser um passo na direção correta, mas não pacifica o problema. “A questão central, que nunca foi debatida, é a alta taxa de inadimplência, que leva a juros elevados e à bola de neve. Estamos aprendendo a duras penas como reformar o produto. Esse limite aprovado é como um ‘band-aid’ para alguém que foi incendiado, está todo queimado”, disse um advogado ligado a uma dessas bancas.
Como não há prazo na norma para o atingimento do limite de 100% de juros, o efeito prático nas taxas nominais deve ser baixo. Em outubro, as taxas de juros do rotativo estavam em 431,58% ao ano (embora só possam ser cobradas por um mês), ou 14,94% ao mês, de acordo com o BC. Já nos parcelamentos do cartão de crédito, as taxas estavam em 195,6% ao ano, ou 9,45% ao mês. Apesar dos números, na prática o brasileiro permanece no rotativo por, em média, 18 dias, segundo dados do setor.
Em relatório, a filial brasileira do banco norte-americano Citi avaliou que o impacto do novo teto deve ser pequeno para os bancos. “Embora certamente tenha algum impacto negativo (principalmente em indivíduos de alto risco), parece pequeno à primeira vista”, diz. O Goldman Sachs, por sua vez, afirmou que a medida não representa uma grande mudança estrutural para a indústria de cartões.
Já a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) disse, em nota, que o teto é uma “solução temporária”. “As causas dos elevados juros do rotativo não foram estruturalmente solucionadas, o que impacta diretamente os consumidores que precisam dessa linha de crédito”, afirmou a entidade. “Por isso, entendemos como temporária a solução atual e, por não resolver a causa-raiz, os juros se manterão ainda em patamar elevado, prejudicando o comércio e aqueles que mais precisam de crédito para consumir.”
Quais outras mudanças o BC propôs?
O BC trouxe ainda outras mudanças na dinâmica dos cartões, que só entram em vigor em 1º de julho de 2024. O regulador disciplinou a portabilidade do saldo devedor da fatura de cartão de crédito e instituiu mudanças para aumentar a transparência das faturas e as medidas de educação financeira por parte das instituições financeiras.Entre outros pontos, as faturas de cartão passarão a conter: uma área de destaque com informações consideradas essenciais, como valor total, data de vencimento da fatura do período vigente e limite total de crédito; uma área para alternativas de pagamento, na qual devem estar as informações que possibilitem ao titular da conta comparar as opções disponibilizadas para liquidar sua dívida; e uma área com informações complementares.Instituições autorizadas pelo BC deverão também adotar medidas de educação financeira que contribuam para a organização e o planejamento do orçamento pessoal e familiar, a formação de poupança e de resiliência financeiras, e a prevenção ao inadimplemento das operações e do superendividamento. Terão ainda que instituir mecanismos de acompanhamento e controle da política de educação financeira e indicar um diretor responsável pelo cumprimento.
Em que contexto as medidas foram tomadas?
Desde o início do ano, tem havido pressão do governo por alternativas que reduzam os juros do rotativo. Em meio a tratativas do Ministério da Fazenda com o setor, o Congresso incluiu, na lei do Desenrola, trecho que propôs um teto para os juros da modalidade e deu 90 dias para o setor buscar uma solução.Ao longo dos debates, os bancos, representados pela Febraban, defenderam a inclusão de mudanças que limitassem o parcelado sem juros, alegando que a modalidade causa distorções e está por trás dos altos juros. Atualmente, não incidem juros sobre cerca de 75% do volume de compras no cartão.O movimento dos bancos levou a uma forte reação das credenciadoras independentes, representadas pela Associação Brasileira de Internet (Abranet) e pela Associação Brasileira de Instituições de Pagamentos (Abipag), que têm parte importante das suas receitas vindas da antecipação de recebíveis de cartão e alegam que mudanças no parcelamento sem juros prejudicariam o consumo. O embate entre os segmentos gerou brigas públicas e foi parar até na Justiça.
A credenciadora Stone informou que ajuizou queixa-crime contra o presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Isaac Sidney, em razão da “campanha difamatória que vem conduzindo contra as instituições de pagamento, com veiculação sistemática de declarações que atacam indevida e infundadamente a reputação da companhia e a de todo o setor em que atua”.
Segundo a Stone, a acusação falsa e infamante de que a companhia supostamente não atuaria conforme permitido pelo arcabouço legal e regulatório é inadmissível e não será tolerada. “Além de sempre ter se pautado pela estrita observância das regras que regem suas atividades, a companhia vem atuando, desde sua fundação, no sentido de cumprir sua missão de ajudar o empreendedor brasileiro a gerir seu negócio de forma mais eficiente”.
Sem consenso no setor, o CMN acabou apenas detalhando como deverá ser a operacionalização do teto previsto na lei do Desenrola.
O grupo de bancos formado por Itaú, Santander, Bradesco e Nubank chegou a mandar para o BC uma proposta de autorregulamentação do teto, mas que não foi acatada. O consultor do Departamento de Regulação do Sistema Financeiro do BC, Antonio Guimarães, explicou que os bancos apresentaram propostas que estavam em desacordo com o texto da lei.
* Reportagem: Val-André Mutran – Correspondente do Blog do Zé Dudu em Brasília.