O fantasma da dependência assusta municípios do Norte do País, alçados à condição de “novos ricos” da mineração, diante da crise detonada pelas recentes tragédias com barragens de dejetos da Vale e da Samarco em Brumadinho e Mariana, em Minas Gerais.
O rompimento das barragens afetou a produção de minério de ferro no Estado e também o desenvolvimento do projeto S11D, o maior investimento da Vale, em operação desde 2017 em Canaã dos Carajás (PA).
Até agosto, os 63 municípios mineradores do Pará arrecadaram R$ 1,3 bilhão em Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), o royalty da mineração, ultrapassando a liderança histórica das 471 cidades mineradoras de Minas Gerais, com receita de R$ 1,2 bilhão, segundo a Agência Nacional de Mineração (ANM).
A reversão decorre da combinação entre o aumento de produção da Vale no Sistema Norte e a evolução do S11D, e a paralisação de algumas operações em Minas pós-Brumadinho.
A cidade de Parauapebas, onde está a operação mais antiga da Vale na região de Carajás, lidera o ranking nacional de recolhimento de royalties, com R$ 684 milhões no ano. Em seguida vem Canaã, com R$ 430 milhões e perspectiva favorável por abrigar o S11D. Em 2018, a arrecadação de CFEM do município subiu 349%, para R$ 321 milhões.
Temendo repetir a situação vista em cidades de Minas, onde a CFEM é imprescindível para as finanças públicas, as prefeituras locais querem evitar que a riqueza gerada pela atividade se torne herança maldita. A vida útil das minas de ferro da Vale no Pará vai de 2042, na Serra Norte, a 2062 no projeto S11D e na Serra Leste, mas os problemas enfrentados por seus pares no Sudeste acenderam o sinal de alerta. “O minério não é muito diferente de um doce. Uma hora vai raspar tudo e chegar ao fundo do tacho”, afirmou Jeová Andrade, prefeito de Canaã, durante encontro de municípios mineradores no mês passado.
Poupança
A prefeitura de Canaã criou em 2017 o Fundo Municipal de Desenvolvimento Sustentável. Ele destina 5% do valor da CFEM a investimentos de empreendedores locais em áreas como agricultura e comércio, por meio de uma linha de crédito com juros menores que os de mercado. Também prevê financiar instituições de ensino, pesquisa e bolsas de estudo.
Hoje são R$ 23 milhões em caixa e a meta é superar os R$ 50 milhões ao fim de 2020. “Precisamos estar preparados e ter alternativas”, disse Andrade.
Em iniciativa semelhante, Parauapebas destinou quase R$ 5 milhões da CFEM nos últimos dois anos e meio ao financiamento de iniciativas econômicas como o programa de mecanização agrícola, obras de urbanização, como manutenção de estradas, programa de iluminação pública com LED, reestruturação do distrito industrial e atração de novos empreendimentos.
Ao contrário de Canaã, os valores são definidos anualmente na Lei Orçamentária. Para 2020, estão previstos R$ 3 milhões. No início do mês, o município aprovou a criação do Fundo de Incentivo às Ações de Ensino Superior, que receberá 1,7% da arrecadação com a CFEM. “Estamos nos preparando para o day after (o futuro)”, disse Darci Lermen (MDB-PA), prefeito de Parauapebas. “Em 15 anos queremos nos consolidar também no turismo e na produção rural.”
Apesar de considerar positivo o engajamento dos prefeitos, a postura pode ser insuficiente, segundo a professora da faculdade de Economia da Universidade Federal do Pará (UFPA), Maria Amelia Enriquez. “Não é trivial romper com a dependência mineral”, disse. “Isso exigiria esforço que vai além do município minerador e tem a ver com política federal e estadual.”
Especialistas descrevem uma espécie de efeito ímã das cidades mineradoras. Por concentrarem mais riqueza, atraem os melhores fatores de produção dos municípios vizinhos. Com a economia aquecida, o custo de vida sobe e a população que não participa do circuito da mineração vai embora. Quanto mais o setor prospera, maior se torna o vínculo, pois as empresas atraídas são quase sempre prestadoras de serviços para a mineração.
A maior arrecadação de royalties também não se traduz necessariamente em melhoria do indicador de desenvolvimento. Os dez municípios que mais receberam royalties de petróleo e mineração este ano estão longe do topo do ranking nacional do Índice Firjan de Desenvolvimento Municipal (IFDM) – divulgado em 2018, com dados de 2016. O estudo acompanha o desenvolvimento socioeconômico dos mais de 5 mil municípios do País em três áreas: emprego e renda, educação e saúde.
Ranking
Cruzamento feito pelo Estadão/Broadcast mostra que, entre os produtores de petróleo, Ilhabela (SP) é o melhor colocado, na 31.ª posição no ranking e a quinta maior arrecadação este ano até agosto, segundo a Agência Nacional do Petróleo (ANP). Já a líder em arrecadação, a cidade fluminense de Maricá, é a número 2.669 no índice.
Entre os mineradores, Nova Lima, o quarto maior em CFEM, é o município mais bem colocado em termos de desenvolvimento, na 264.ª colocação. Líderes em arrecadação de royalties, Parauapebas e Canaã dos Carajás ocupam as posições 1.318 e 2.503, respectivamente.
Estudo do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas em parceria com a professora Maria Amelia mapeou o uso da CFEM em Canaã com base em dados da Lei Orçamentária de 2018. O resultado aponta que a prioridade no uso dos royalties não tem sido criar alternativas que minimizem a dependência da mineração.
A maior parcela (39%) dos recursos da CFEM foi para o urbanismo (asfaltamento de ruas e limpeza pública, por exemplo). Outros 30% foram gastos com administração pública e 14% com saneamento. Só 5% foram para agricultura, atividade que pode ser alternativa econômica.
Os indicadores dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável revelaram situações paradoxais em Canaã: houve melhora em dimensões associadas ao crescimento econômico, à infraestrutura e à educação, mas agravamento de problemas sociais ligados ao aumento da pobreza, da desigualdade racial, de gênero e da violência.
A divergência entre a previsão e a real arrecadação impede a execução de planejamento eficaz. Maria Amelia considera infrutíferas estratégias de diversificação, como a criação de distritos industriais no Sudeste do Pará. “É um investimento muito grande em um capital físico que fica ocioso”, disse. “Não se cria dinâmica econômica por decreto.”
Alternativas
Enquanto municípios da Região Norte entram agora na era dourada da arrecadação de royalties da mineração, Minas Gerais vive fase de declínio da atividade. Em Itabira, o esgotamento dos recursos é iminente. Relatório da Vale enviado à entidade que regula o mercado de capitais nos Estados Unidos fala em exaurimento em 2028.
Cidades como São Gonçalo do Rio Abaixo e Nova Lima se depararam com a paralisação inesperada de operações da Vale, como em Vargem Grande, na esteira do rompimento da barragem em Brumadinho.
As cidades mineradoras convivem com uma instabilidade inerente à atividade. Em busca de alternativas, Itabira assinou, em julho, memorando de entendimento com as chinesas Chalieco e Cinf Engineering, do grupo Chinalco, para a implantação de três projetos: a expansão do Campus da Universidade Federal de Itajubá (Unifei), a construção do Parque Científico e Tecnológico de Itabira (PCTI) e do Aeroporto Industrial de Itabira. Os investimentos devem superar US$ 100 milhões, tendo como garantia recursos da receita com royalties da mineração.
“Itabira é o caso mais grave pela iminência de exaurimento da mineração”, afirmou Thiago Toscano, presidente da Agência de Promoção de Investimento e Comércio Exterior de Minas (Indi). “Assinaram o memorando, mas para desenvolver qual tipo de tecnologia? Vender para quem? Escoar por onde? Trazer qual tipo de carga (pelo aeroporto)? Há muitas ideias soltas e que não se conectam com a realidade dos municípios.”
Durante encontro da Associação de Municípios Mineradores de Minas e do Brasil (Amig), em agosto, Toscano deu dois recados aos prefeitos: o município não atrai investimentos, mas se torna atrativo para recebê-los; mais dinheiro (royalties) nem sempre resolve o problema. Toscano disse que os municípios precisam se posicionar.
O caso de Extrema, no sul de Minas, é citado como referência. Com o maior PIB per capita do Estado, chega a recusar investimentos, informou Toscano. “Extrema aproveitou sua logística e se posicionou para ser a extensão de São Paulo, mas com custo mais barato.”
Antes de investir, as companhias analisam pontos como infraestrutura, logística, segurança, educação e saúde. São Gonçalo do Rio Abaixo é vista como exemplo de boa gestão, mas, segundo o executivo do Indi, sofre porque, apesar de estar a apenas 90 km de Belo Horizonte, o percurso entre as duas cidades leva em média três horas. A solução passaria pela duplicação da BR-381, mas isso depende de articulação política.
Enquanto discutem alternativas, prefeitos de cidades mineiras são questionados pelo Tribunal de Contas em relação ao uso dos royalties. O TCE de Minas determinou recentemente a devolução de milhões em recursos de Mariana e Itabirito, em ações relativas ao orçamento de 2013. O tribunal defende que a CFEM seja aplicada em infraestrutura e diversificação econômica.
A Amig disse que a lei veda apenas o uso dos recursos para a quitação de dívidas e folha de pagamento, além de recomendar a aplicação preferencial de 20% da arrecadação em infraestrutura e diversificação econômica. “Uma coisa é se o município usa bem o dinheiro, outra é se usa dentro da lei. A Amig está dentro da lei”, disse o consultor da entidade, Waldir Salvador.
(Portal Terra)