Está na página 457 do terceiro volume do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) referente às obras de dragagem e derrocamento no Rio Tocantins: “A remoção parcial do Pedral do Lourenço virá a contribuir para o aumento da rota. Entretanto, atividades antrópicas, a exemplo da dragagem/derrocamento, têm potencial para interferir negativamente nesta riqueza de espécies de peixes, com consequências nos recursos pesqueiros”. Essa e outras advertências, que virão à tona em debates ambientais que prometem ser acalorados por ocasião das audiências públicas da tão aguardada empreitada de remoção de pedras do rio, chama atenção para o impacto no ecossistema aquático do qual milhares de paraenses dependem como fonte de renda.
O Rio Tocantins drena uma área de 343 mil quilômetros quadrados (maior, aliás, que o estado do Maranhão, que possui 332 mil quilômetros quadrados) e, no trecho entre os municípios paraenses de Marabá e Baião, onde vão se concentrar os serviços de dragagem e do derrocamento, cerca de 600 mil pessoas dependem diretamente de suas águas para sobreviver. Muitos desses moradores são ribeirinhos, que se sustentam da pesca no rio que é considerado um dos maiores berçários da ictiofauna (conjunto de peixes) da Amazônia.
Não é demais lembrar que o Rio Tocantins já foi alvo de uma grande “mexida” em seu trajeto original, com alterações ecológicas importantes, na década de 1980, por conta da construção da Usina Hidrelétrica de Tucuruí.
Neste domingo (17), o Blog do Zé Dudu analisou todas as 797 páginas do “Diagnóstico Ambiental do Meio Biótico” constantes do EIA do Pedral do Lourenço, em cujo documento é apresentado um minucioso panorama de flora, fauna, bioindicadores, unidades de conservação e áreas legalmente protegidas. Pelo calhamaço a examinar, o Blog centrou esforços na situação de vertebrados (anfíbios, répteis, aves, mamíferos e peixes) que vão assistir ao vuco-vuco da megaobra.
A conclusão é de que programas e medidas ambientais precisam caminhar paralelas aos serviços físicos para que espécies da vida selvagem que são símbolo da Amazônia não desapareçam do Rio Tocantins e seu entorno, principalmente ao se levar em conta que o sudeste do Pará, região em que o imponente curso d’água será alvo de derrocamento, é uma das partes mais devastadas do bioma.
Tracajá e sapinho em perigo
Biólogos foram a campo fazer o levantamento das espécies que sobrevivem no perímetro das obras de derrocamento e dragagem em dois momentos distintos: na época da seca (entre agosto e setembro de 2017) e no período das chuvas (em janeiro de 2018). As amostras foram coletadas nas proximidades de onde devem se posicionar canteiros de obras e paiol.
Os pesquisadores registraram 21 espécies de anfíbios, todos anuros (ou melhor, sapos, rãs e pererecas), e 18 de répteis. Duas espécies — um réptil e um anfíbio — estão enquadrados em algum grau de ameaça. Uma delas é o tracajá (“Podocnemis unifilis”), considerado vulnerável na lista internacional de espécies ameaçadas, e a outra é o sapinho-paludícola (“Pseudopaludicola canga”), considerado em perigo na lista estadual de espécies do Pará em razão de seu limitado habitat de ocorrência estar no meio do olho do furacão do desmatamento na Amazônia.
Trecho tem 31 aves endêmicas
Os biólogos também identificaram 211 espécies de aves, 178 das quais para áreas de terra firme e as demais, 33, para trechos do Rio Tocantins. Das mais de 200 aves avistadas, sete estão sob alguma ameaça de extinção, e a situação mais preocupante é a do mutum-de-penacho (“Crax fasciolata”), espécie considerada criticamente em perigo na lista nacional. As aves chora-chuva-de-cara-branca (“Monasa morphoeus”) e pica-pau-de-belém (“Piculus paraenses”) estão em perigo na lista nacional, enquanto são consideradas vulneráveis as espécies jacupiranga (“Penelope pileata”), murucututu (“Pulsatrix perspicillata”), tucano-de-bico-preto (“Ramphastos vitellinus”) e tucano-grande-de-papo-branco (“Ramphastos tucanus”). Entre todas as aves registradas em pontos específicos entre Marabá e Baião, 31 são espécies endêmicas da Amazônia.
Já o levantamento de mamíferos identificou 42 espécies não voadoras, além de 30 espécies de morcegos. Foram registrados pelos biólogos seis mamíferos de médio e grande portes em situação de ameaça, a saber: a suçuarana (“Puma concolor”), a anta (“Tapirus terrestris”), o gato-maracajá (“Leopardus wwiedii”), o cachorro-do-mato-vinagre (“Speothos venaticus”), o capelão (“Alouatta belzebul”) e o sagui-una (“Saguinus niger”).
60% de peixes são comerciais
Manancial de fartura em peixes, o trecho do Rio Tocantins que será alvo das obras apresentou diversidade de 207 espécies, de acordo com o EIA do empreendimento. Isso é equivalente a 60% das 343 espécies de peixes previstas para todo o Rio Tocantins e 8% das 2.587 espécies de peixes de água doce indicadas haver no Brasil.
Os estudos ictiofaunísticos contemplaram trecho entre o ponto mais à montante, localizado no município de Marabá, até o ponto mais à jusante, no município de Baião — ambos os quais localizados respectivamente à montante e à jusante da hidrelétrica de Tucuruí. Das espécies visualizadas nos levantamentos de campo, 124 (ou 60%) são peixes considerados importantes para a economia da região, dado o seu valor comercial, como o tucunaré (“Cichla” sp.).
O trecho do rio entre a altura da cidade de Itupiranga e o início do reservatório da hidrelétrica de Tucuruí é o mais rico, do ponto de vista da diversidade, com 162 espécies registradas. Os peixes mais comumente encontrados são a manjuba (“Lycengraulis batesii”), o cará-vermelho (“Geophagus proximus”), um tipo de curimatá (“Cyphocharax leucostictus”) e a pescada (“Plagioscion” sp.). Apesar da variedade, duas espécies foram registradas como em risco de extinção. A situação mais grave é a da arraia-disco (“Paratrygon aiereba”), considerada criticamente em perigo em lista internacional. E ainda tem o pacu (“Mylesinus paucisquamatus”), que está na lista estadual como vulnerável.
Botos podem ser impactados
De acordo com o relatório, os maiores impactos do meio biótico na etapa de implantação da obra está na perda e alteração de habitat aquático, com médio grau de relevância nos trechos 1, 2 e 3 do perímetro do Rio Tocantins entre Marabá e Baião. Na prática, isso quer dizer que pode haver perturbações, mesmo que de mínima a média intensidade, à vida de peixes, como os de importância para a pesca; répteis como o jacaré-açu (“Melanosuchus niger”), este cada vez mais raro no rio; e cetáceos, como os botos tucuxis (“Sotalia” sp.) e do-araguaia (“Inia araguaiaensis”), avistados durante o estudo.
O boto-do-araguaia, aliás, só é avistado à montante da hidrelétrica de Tucuruí e, conforme o levantamento, “o trecho rochoso do Rio Tocantins onde se localiza o Pedral do Lourenço é de grande importância biológica para a conservação da população da espécie”. Esse animal é excelente indicador de qualidade ambiental tanto por acumular contaminantes presentes no ecossistema quanto por estarem associados a habitats produtivos e com alta densidade de presas.
A arte do derrocamento e da dragagem para garantir a tão sonhada e profetizada navegabilidade ao Rio Tocantins e potencializar a economia do sudeste paraense não virá sem polêmicas e controvérsias, especialmente do ponto de vista ambiental. E as questões que envolvem os meios físico e, sobretudo, biótico prometem pegar fogo nas audiências públicas previstas para apresentação do empreendimento, que mudará o Pará e o Rio Tocantins — mais uma vez — para sempre.
5 comentários em “Obras do Pedral do Lourenço vão mexer com espécies da fauna regional”
Contro c contro v
Excelente texto!!!!!
Finalmente uma matéria a altura do blog…só política afasta os leitores
Parabéns pelo conteúdo Zé dudu!! Informações valiosas e de primeira grandeza!! Muita gente não conhece a biodiversidade da nossa região e isso precisa ficar claro.
Quanta coisa pode desaparecer!…. cade os profetas do crescimento à todo custo???…..