Do Valor Econômico
Uma terra sem dono e, por vezes, com donos demais. As contradições expostas pela desordem fundiária que toma conta do Pará parecem ignorar o futuro bilionário que projetos de infraestrutura reservam para o segundo maior Estado do país. Tirar uma fotografia precisa da situação em que se encontra hoje a distribuição de terras paraenses é tarefa quase impossível, dada a complexidade – e a falsidade – de títulos que demandam um quinhão de seu 1,247 milhão de quilômetros quadrados, área que equivale a duas vezes o território da Espanha e de Portugal juntos. Uma tentativa de esquadrinhar a dimensão desse problema, no entanto, acaba de ser concluída pelo instituto de pesquisa Imazon, organização que trabalhou dois anos na compilação de uma série de dados federais e estaduais sobre a ocupação do solo no Estado.
O resultado é dramático. Hoje, 39% das terras do Pará estão em situação absolutamente irregular. Para complicar ainda mais, 92% dessas terras sem títulos não são, atualmente, objeto de nenhum programa de regularização fundiária, aponta o levantamento. O que justifica o fato de 61% do território paraense ter, supostamente, seus papéis em ordem, são as grandes áreas do Estado definidas como unidades de conservação ambiental e terras indígenas demarcadas. Juntas, elas somam 76% dessa parcela de terras que estariam em situação regular. A realidade fica mais crítica quando se observa o volume efetivo de imóveis que foram certificados até hoje no Estado pelos programas de regularização fundiária. Pelos cálculos do Imazon, esses imóveis não chegam a representar 3% de toda a área considerada regular.
Por trás dessa confusão no território está um emaranhado de milhares de títulos fraudulentos registrados em cartórios. Segundo dados da Comissão Estadual de Combate à Grilagem de Terras, já foram identificados cerca de 9,8 mil títulos falsos de terras. Em 2010, uma primeira leva de 5 mil registros tiveram seus cancelamentos determinados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Uma segunda parcela de registros, portanto, ainda precisa ser cancelada, mas já há notícias de que milhares de recursos foram apresentados à Justiça contra as primeiras decisões, ou seja, esses processos se arrastarão por anos.
“Um dos maiores problemas que identificamos é que não existe uma ação coordenada entre os governos federal e estadual. As instituições responsáveis pela regularização fundiária não se conversam, não trocam dados, e isso só complica ainda mais o trabalho”, diz Brenda Brito, uma das pesquisadoras responsáveis pelo estudo do Imazon.
A diretoria de planejamento do Programa Terra Legal, iniciativa do Ministério do Desenvolvimento Agrário que tem a missão de resolver os conflitos de terra, reconhece as limitações. “Há, de fato, necessidade de estreitarmos o relacionamento com os governos estaduais, principalmente no Pará, que tem a situação fundiária mais complexa da Amazônia Legal”, diz Márcio Fontes Hirata, diretor de planejamento do Terra Legal. A Amazônia Legal engloba nove Estados pertencentes à bacia amazônica.
Os dados do Terra Legal refletem a lentidão da regularização fundiária. Depois de quatro anos de trabalho, a iniciativa conseguiu cadastrar dados de 48 mil famílias que vivem no Pará. Com base nesse cadastro, foi possível fazer até agora o georreferenciamento de 27 mil imóveis. A emissão de escrituras definitivas, no entanto, chegou a pouco mais de mil imóveis até agora. “Realmente não estamos na velocidade que imaginávamos e que gostaríamos, mas também não estamos parados. O trabalho está sendo realizado por etapas, temos avançado aos poucos”, comenta Hirata.
Umas das dificuldades enfrentadas pelo programa no Pará, diz o diretor do Terra Legal, está atrelado às dificuldades de relacionamento com o governo do Estado. Até hoje, afirma Hirata, o Pará foi o único Estado entre os nove da Amazônia Legal que não tomou recursos do programa para regulariza a situação fundiária. O Terra Legal já repassou R$ 73 milhões aos Estados desde 2009. Para este ano, a previsão de seu orçamento chega a R$ 92 milhões. Hirata também que não há troca de informações com o Instituto Estadual de Terras do Pará (Iterpa), órgão paraense responsável por lidar com o tema fundiário. “Estamos dispostos a dialogar, mas hoje o Pará tem se mostrado mais fechado ao diálogo e temos caminhado de forma paralela, quando o melhor seria caminharmos juntos”, diz Hirata. Ele exibe dados de Rondônia, onde o programa tem avançado mais rapidamente. “Em Rondônia, cadastramos 25 mil famílias, medimos 14 mil e já entregamos 1,5 mil títulos. Proporcionalmente, é um resultado muito mais expressivo que o do Pará”, diz.
O Valor procurou representantes do Iterpa para falar sobre o assunto, mas não obteve nenhum retorno até o fechamento desta edição. O governador do Pará, Simão Jatene (PSDB), também foi contatado, mas não retornou ao pedido de entrevista.
Hoje, se somados apenas os principais projetos e empreendimentos de geração de energia e de mineração em andamento no Pará, chega-se a uma cifra de investimentos que supera, facilmente, a marca dos R$ 100 bilhões nos próximos cinco anos. Nessa relação estão obras com a da usina de Belo Monte, hidrelétrica de R$ 29 bilhões que está sendo erguida no rio Xingu, na região de Altamira, onde milhares de palafitas exibem a fragilidade sobre a qual vive boa parte da população do Estado. Os donos da hidrelétrica prometem dar um jeito na situação e retirar as palafitas dali. A área será inundada.