Brasília – Três dias foram suficientes, após cerimônia no Palácio do Planalto na qual o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou dois decretos revisando as regras do Marco Regulatório do Saneamento Básico, para o texto ser digerido por especialistas. As reações prenunciam o arranjo da maior derrota do governo que completa 100 dias na próxima segunda-feira (10).
Ao declarar em sua conta numa rede social que defende “a revisão do Marco Legal do Saneamento com o propósito de aperfeiçoar a legislação vigente. Porém, alerto que o parlamento irá analisar criteriosamente as sugestões, mas não vai admitir retrocessos,” o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), agiu como se autorizasse a reação política para derrubar as duas medidas.
Sua declaração foi interpretada como um sinal de que ele se mobilizará para derrubar parte dos atos de Lula. Parlamentares aliados de Lira já começaram a rascunhar projetos de lei que tiram o efeito dos atos administrativos. Deputados do Partido Novo já se manifestaram e disseram que estão trabalhando para derrubar as mudanças, cujo texto foi redigido no Ministério das Cidades e avalizado pela Casa Civil.
O líder do PP na Casa, André Fufuca (MA), foi enfático ao declarar que a sigla “não apoiará nenhum retrocesso em relação ao Marco Legal do Saneamento”. “Debateremos com responsabilidade qualquer ponto que vise positivar ou melhorar o tema,” completou, seguindo a mesma linha que o presidente da Câmara.
Prevendo uma derrota acachapante do governo, aliado do governo federal e líder do PSB na Câmara dos Deputados, Felipe Carreras (PE) defendeu que o Congresso “analise com cuidado as sugestões”.
“Não vejo críticas [da parte de Lira]. Vejo que ele defende a revisão e que nós, parlamentares, vamos analisar com cuidado as sugestões. É natural que a Câmara, por sua pluralidade, tenha visões diferentes. Vamos democraticamente debater e chegar no melhor texto”, amenizou, confirmando que o Legislativo deve se debruçar sobre o teor das medidas após o feriadão.
Internamente, o presidente da Câmara deixou clara a sua insatisfação com os decretos, que, na visão dele, se intrometem em um assunto que deveria ser debatido pelo Congresso. E repete a quem o procura sobre o assunto: “Antes de falar do que pode desmanchar, vamos falar do que vamos construir,” avisou Arthur Lira.
Pontos que irritaram os congressistas
Os decretos de Lula trazem dois pontos considerados questionáveis pelos congressistas e especialistas do setor: a possibilidade de empresas estaduais prestarem o serviço em áreas metropolitanas, aglomerados urbanos e microrregiões sem necessidade de licitação, e a permissão para a regularização de contratos precários.
Uma das principais inovações do marco regulatório de 2020 era forçar as companhias estaduais deficitárias a organizarem as contas e comprovarem capacidade financeira de fazer os investimentos necessários a ampliar o acesso da população à água potável e tratamento de esgoto. O objetivo final era cumprir a meta de universalização do acesso em 2033, ou seja, fornecer água para 99% da população e coleta e tratamento de esgoto para 90%.
Em caso de falta de capacidade, as companhias teriam obrigatoriamente que abrir licitação ou firmar Parcerias Público Privadas (PPPs) para assegurar o serviço, sob pena de não ter acesso a recursos públicos. Um dos decretos editados por Lula flexibiliza os critérios a serem adotados nesta análise, que já foi realizada pelas companhias nos últimos dois anos e permite que elas refaçam o processo até 31 de dezembro de 2023.
Na cerimônia de assinatura dos dois decretos na quarta-feira (5), ao sancionar os atos, o presidente Lula pediu um “voto de confiança” às empresas públicas e prefeituras que foram beneficiadas com os atos administrativos.
Editorial
Tido como aliado da candidatura do então candidato à presidência Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o jornal O Globo, veículo do maior grupo de comunicação do país, o Grupo Globo, publicou um editorial que parece encerrar a lua de mel da empresa com o governo. Confira:
Lula promove retrocesso que pune os pobres
Atos sobre saneamento e privatização provam que ele prefere agradar a políticos e corporações das estatais
Até outubro, a nova legislação do saneamento propiciou, além da venda da Cedae no Rio de Janeiro, licitações em Alagoas, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Amapá, Ceará e Goiás. Os investimentos garantidos pelas concessionárias somam R$ 72,2 bilhões. A intervenção do governo Lula instala insegurança jurídica — já há processo no STF contra a contratação sem licitação da estatal paraibana por 30 municípios — e retardará a modernização do setor.
O objetivo da mudança é proteger estatais, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste, onde prefeitos de cerca de 800 municípios querem continuar a renovar contrato com as companhias estaduais de saneamento sem licitação nem metas a cumprir. Lula ainda atribuiu ao Ministério das Cidades autoridade para regular o saneamento básico, esvaziando a Agência Nacional de Águas (ANA). O que era feito com base em critérios técnicos passará a ser ditado por interesses políticos.
O resultado disso tudo é evidente: atrasará a meta de, até 2033, abastecer 99% das casas com água potável e coletar 90% do esgoto (já três anos atrasada em relação aos objetivos estabelecidos pela ONU). Hoje falta água a 35 milhões de brasileiros e coleta de esgoto a 100 milhões, e não há marca mais evidente da miséria que Lula diz querer combater do que as condições insalubres em que vive essa parcela da população.
A outra investida de Lula para agradar a grupos de interesse em seu governo foi a retirada de sete estatais do programa de privatizações. Entre elas, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), cujo modelo de venda estava pronto, elaborado com base num estudo comparativo do BNDES com as economias mais avançadas. A privatização e a nova regulação aumentariam a arrecadação em R$ 4,4 bilhões anuais, além de atrair bilhões em investimentos a um setor de desempenho sofrível, como sabe qualquer morador do Rio, onde cartas não chegam nem mesmo uma vez por semana a bairros de classe alta. Que dizer das áreas mais pobres, que Lula afirma defender?
Além dos Correios, Lula desistiu de privatizar Dataprev e Serpro (duas empresas de processamento de dados cujos serviços poderiam ser contratados de terceiros sem perda nenhuma), a EBC (mero braço de propaganda do governo cujo orçamento beira R$ 750 milhões), o Ceitec (fabricante de semicondutores ultrapassados, que trouxe quase R$ 1 bilhão de prejuízo sem conquistar nenhuma relevância para o Brasil nesse mercado) e duas outras estatais. Todas essas privatizações trariam mais recursos a um Estado falido, a que faltam recursos para prover serviços básicos aos mais pobres.
Lula pode até acreditar que o Brasil tem dinheiro sobrando para atender a todos. Mas os decretos sobre saneamento e venda das estatais provam que sua prioridade é garantir espaço para seus aliados e agradar às corporações sindicais que seriam afetadas pelas privatizações.
Por Val-André Mutran – de Brasília