Um projeto de emenda à Constituição (PEC) e dois projetos de lei foram apresentados no Senado, diante do avanço das queimadas no Brasil. Em seu PL, o senador Jader Barbalho (MDB-PA) propõe classificar incêndios em áreas rurais como crime hediondo, enquanto o de autoria de Humberto Costa (PT-PE) começou a tramitar no início do mês e aumenta as penas para incêndios cometidos por grupos. Já a senadora Mara Gabrilli (PSD-SP), propôs, através de uma PEC, tornar a qualidade do ar um dos direitos fundamentais.
As propostas respondem ao aumento no número de queimadas no Brasil, que registrou 68,3 mil focos em agosto deste ano, um crescimento de 144% em relação ao mesmo período de 2023, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Além dos danos ambientais, os incêndios têm impacto na saúde pública. Conforme o Inpe, uma cortina de fumaça chegou a cobrir até 60% do território nacional, afetando a qualidade do ar em diversas regiões do Brasil e em países vizinhos. Os biomas mais atingidos são a Amazônia e o Cerrado, onde as queimadas são frequentemente provocadas por desmatamento e atividades agrícolas.
Crime hediondo
Aguardando publicação e distribuição para as comissões temáticas, o PL nº 3.517/2024, de Jader Barbalho, altera a Lei de Crimes Hediondos (Lei nº 8.072, de 1990) para incluir o incêndio em áreas rurais entre os crimes sujeitos a penas mais severas. O senador destaca que 199 milhões de hectares, ou 23% do território brasileiro, foram atingidos por incêndios desde 1985, com grande parte dos focos localizados no Cerrado e na Amazônia.
“Em virtude dos desastres ambientais e das perdas de vidas que os incêndios provocam todos os anos, é necessário tratar esse tipo de crime com maior rigor, aplicando penas mais severas e transformando-o em hediondo,” defende Barbalho.
Já o PL nº 3.417/2024, do senador Humberto Costa, modifica o Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 1940) e a Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605, de 1998) para aumentar a pena em um terço para incêndios cometidos por duas ou mais pessoas. A proposta está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), aguardando emendas, antes da votação em caráter terminativo. Ou seja, se aprovado na comissão, o texto seguirá diretamente para a Câmara dos Deputados, a menos que seja aprovado requerimento para votação em Plenário.
“Incêndios, por si só, são trágicos, mas quando ocorrem de forma intencional, são inaceitáveis, daí porque são considerados crimes. Mais graves, ainda, são os incêndios cometidos por grupos de pessoas, pois essa circunstância potencializa o alcance das condutas e, por conseguinte, as consequências para as pessoas, o patrimônio e o meio ambiente atingidos,” afirma Costa.
Direito fundamental
Até este ano, o aumento das queimadas eram erroneamente tratados por algumas autoridades como um problema localizado. Mas, em 2024, essa avaliação caiu por terra.
Em boa parte do Brasil, a péssima situação do ar, há muito deteriorada pela combustão de indústrias e automóveis e pela destruição do meio ambiente, está sendo ainda mais prejudicada pela quantidade de focos de incêndios que avermelham o mapa brasileiro.
De janeiro até essa terça-feira (17), o país registrou 167.452 focos de queimadas, mais que o dobro do mesmo período no ano passado. Mato Grosso, Pará e Amazonas – estados onde estão os biomas Pantanal, Amazônico e uma parte do Cerrado – dominam as piores estatísticas, conforme os índices do Inpe. Mas os impactos não são sentidos apenas nessas regiões: no último fim de semana, a previsão é de que a fumaça tenha tomado conta de 60% do país.
Após um ano de uma estiagem severa, a vegetação e o solo de quase todo o país, não importa o bioma, estão secos, e basta uma fagulha para um incêndio de grandes proporções sair do controle. A preocupação com o agravamento dessa situação, que não é de agora, vem estimulando debates, estudos e proposições no Senado.
A Constituição Federal define em seu artigo 225 o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, que pressupõe uma boa qualidade do ar disponível. A PEC nº 7/2021 torna explícito o direito à qualidade do ar entre os direitos e as garantias fundamentais, inclusive em ambientes internos públicos e privados de uso coletivo.
A primeira signatária da proposta, senadora Mara Gabrilli, foi enfática ao dizer que a qualidade do ar é um dos principais fatores para a manutenção da saúde da população. A proposta foi pensada em meio à pandemia da covid-19, mas mantém-se atual com a situação preocupante do ar que se respira no país.
“Propomos que o direito à qualidade do ar seja elevado ao patamar constitucional, para conferir maior segurança jurídica ao marco regulatório vigente, eis que se trata, inegavelmente, de um direito humano fundamental. A poluição atmosférica tem causado violações de outros direitos fundamentais, como o direito à vida e à saúde e o direito de viver em um meio ambiente sadio, saudável e sustentável,” justificou a senadora.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), nove em cada dez pessoas no planeta respiram ar com altos níveis de poluentes. Essa realidade leva à estimativa de milhões de mortes associadas à poluição do ar ambiente em todo o mundo.
Política Nacional
Em março deste ano, o Senado aprovou o PL nº 3.027/2022, para instituir a Política Nacional de Qualidade do Ar. A matéria normatizou-se na Lei nº 14.850, de 2024, definindo princípios, objetivos e instrumentos. O relator do projeto, senador Fabiano Contarato (PT-ES), enfatizou que o Brasil estava bastante atrasado na regulamentação consolidada desta matéria.
Entre os objetivos da lei estão o de assegurar a preservação da saúde pública, do bem-estar e da qualidade ambiental para as presentes e futuras gerações e realizar o adequado monitoramento da qualidade do ar. A lei também estabeleceu a criação do Sistema Nacional de Gestão da Qualidade do Ar (MonitoAr) e determinou que a União, por meio do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), estabeleça padrões nacionais de qualidade do ar que integrarão o Programa Nacional de Controle da Qualidade do Ar (Pronar).
Pelo texto, os estados e o Distrito Federal podem definir, em regulamentos próprios, padrões de qualidade do ar em seus territórios, desde que sejam mais restritivos que os padrões nacionais em vigência.
Consultor legislativo do Senado na área de meio ambiente, Habib Fraxe destacou a importância de a lei buscar uma articulação federativa: “Um sistema de monitoramento depende muito da capacidade institucional dos municípios. Por exemplo, São Paulo é uma cidade conhecida por ter muitas estações de monitoramento, consegue estimar qual o nível dos gases presentes e qual o problema a ser enfrentado, mas a grande maioria dos municípios brasileiros não tem essa condição e não monitora a qualidade do seu ar”.
“Essa lei tem essa característica de incentivar a articulação federativa, inclusive tem uma regra sobre financiamento, por conta que muitos estados e a maioria dos municípios não têm capacidade institucional de implementar as regras que estão propostas ali,” explicou Fraxe.
Em maio deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) também determinou que o Conama faça uma nova resolução sobre os padrões de qualidade do ar. Foi estabelecido o prazo de 24 meses para atualizar as regras em relação aos padrões atuais da OMS, estabelecidos em 2021.
Extremos climáticos
Para o consultor do Senado, pode-se fazer uma analogia com o extremo climático que viveu o Rio Grande do Sul, devastado em muitas áreas pelas fortes enchentes registradas no primeiro semestre deste ano, com a atual situação de queima e consequente deterioração da qualidade do ar no país.
“O que está acontecendo é simplesmente a concretização das previsões que a ciência vem fazendo há muito tempo. O aquecimento do planeta Terra, por meio da maior presença na atmosfera de gases de efeito estufa, causa extremos climáticos, como eventos de extrema chuva, extrema seca, e no caso que estamos vivenciando, extremo de escassez hídrica, com calor e estiagem. Isso na Amazônia é o combustível perfeito para as queimadas,” exemplificou.
Fraxe lembrou que a agricultura brasileira ainda pratica o uso do fogo para a limpeza de terrenos e renovação de pastagens.
“O manejo integrado do fogo é importante de ser feito. Existe a ecologia do fogo, em que os cientistas estudam a melhor época para se utilizar o fogo. Na agricultura, por exemplo, para não acumular combustível, para não utilizar o fogo num momento de maior vulnerabilidade, como agora, quando há extremo de seca, vento muito forte, como observado em São Paulo nas queimadas dos canaviais, com clima muito árido, falta de chuva. Isso também está sendo combustível para as queimadas na Amazônia,” disse.
Diante dessa situação, o consultor ressaltou que o Brasil precisa estar engajado num esforço mundial para a redução da emissão de gases de efeito estufa.
“Nós temos uma parcela de contribuição, sim. Mas é importante que se diga que em torno de 80% das emissões de gases de efeito estufa no mundo vêm de combustíveis fósseis. Isso é um problema que não é só do Brasil, que tem sofrido efeitos, tanto nesse evento do Rio Grande do Sul quanto agora, e que estão sendo causados pelo modelo econômico que nós temos sobretudo para a geração de energia,” afirmou.
Muito do que precisa ser feito para enfrentar esse grave problema também requer articulação dos parlamentares, segundo Fraxe. É o caso de atuar em prol de ações como o fortalecimento de estratégias de combate ao desmatamento, de proibição do uso de fogo em determinadas épocas do ano, de exigir o manejo integrado do fogo para quem tem autorização de supressão da vegetação nativa, de garantir recursos para o fortalecimento de instituições ligadas à proteção ambiental e ao combate às queimadas e aos incêndios, além de sensibilizar a população sobre as alternativas disponíveis para a prevenção dessas queimas.
Por Val-André Mutran – de Brasília