“Bomba atômica fiscal”, é assim que literalmente todos os setores da economia do Brasil estão definindo os efeitos do texto da Medida Provisória (MP n° 1.227/2024), enviado ao Senado Federal na terça-feira (4). Sem aviso prévio ou qualquer negociação política, a equipe econômica do ministro da Fazenda Fernando Haddad surpreendeu os agentes econômicos e partidos políticos com cadeira no Congresso Nacional, anunciando a edição de uma MP para compensar gastos da desoneração da folha de pagamento dos 17 setores intensivos em mão de obra e dos municípios.
Na avaliação de entidades representativas do setor produtivo e de especialistas, a nova medida arrecadatória do governo federal, que altera a sistemática do PIS/Cofins, pode ter consequências significativas.
Afeta, segundo alertam, o planejamento tributário das empresas e pode resultar em aumento de preços para o consumidor, e vão além: a Medida Provisória n° 1.227/2024, que prevê restrições para compensações tributárias, é inconstitucional por confiscar recursos das empresas.
O texto da MP é duríssimo. Limita a compensação de créditos tributários e de créditos presumidos da contribuição para o Programa de Integração Social e o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/Pasep) e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins).
Na quarta-feira (5), uma dia após a MP ser enviada ao Congresso, uma reunião entre os principais setores econômicos, cujas empresas são responsáveis por mais de 90% do Produto Interno (PIB) nacional, decidiram adotar duas medidas:
– Em comunicado conjunto com o apoio das 25 maiores Frentes Parlamentares do Congresso Nacional, formalizaram um pedido para a devolução da MP ao Executivo. Uma medida extrema só adotada cinco vezes na história do país e,
– Judicializar a questão, ingressando no Supremo Tribunal Federal impetrando uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) para derrubar a MP.
Repercussão no setor privado
Mário Sérgio Telles, superintendente de economia da Confederação Nacional das Indústrias (CNI), destaca que a utilização dos créditos do PIS/Cofins já estava prevista no planejamento das empresas. Sem essa possibilidade, os proprietários terão que buscar outras fontes de recursos para pagar impostos.
“Isso significa que as empresas podem precisar recorrer ao sistema financeiro para obter recursos. Além disso, o aumento de custos pode levar a um repasse para os preços, uma vez que há risco de redução dos lucros”, explica o executivo.
Especialistas reforçam o impacto disseminado da medida no setor produtivo. Maria Andréia dos Santos, sócia da banca de advogados Machado Associados, considera a restrição à compensação de créditos tributários como algo abrangente e preocupante.
Anderson Mainates, tributarista do Cascione Advogados, aponta que as empresas exportadoras serão especialmente afetadas pela medida. As novas restrições impedem o uso de créditos de PIS/Cofins para compensar outros tributos.
Empresários de diversos setores se manifestaram contra a medida. A CNI estima que o impacto negativo para o segmento alcance R$ 29,2 bilhões nos sete meses de vigência da MP em 2024, com projeção de R$ 60,8 bilhões para 2025.
Ricardo Alban, presidente da entidade, enfatiza a importância da indústria no desenvolvimento do país e reforça a necessidade de proteger sua competitividade. A Associação Brasileira dos Refinadores Privados também aponta que a medida traz ônus ao setor produtivo nacional, com custos financeiros anuais estimados em mais de R$ 4 bilhões apenas no setor de refino.
A Associação Brasileira dos Frigoríficos (Abrafrigo) considera o aumento da carga tributária inconstitucional e abusivo. Além disso, diversos outros setores, como agricultura, alimentação, combustíveis, indústria farmacêutica e produção de carnes, também criticaram a medida. A discussão sobre o impacto e a necessidade de reformas tributárias continua em pauta.
As críticas das entidades apontam vários problemas na MP. “Embora seja fundamental a implementação de ações para o equilíbrio fiscal, as medidas anunciadas violam frontalmente a imunidade das exportações, o princípio da não cumulatividade, o princípio do não confisco, todos previstos na Constituição Federal, ao revogar uma série de mecanismos da legislação da contribuição de PIS e da Cofins”, destacou uma nota divulgada pela Associação Brasileira do Agronegócio (Abag.
Na avaliação da entidade, a MP caminha na contramão do crescimento socioeconômico, uma vez que onera ainda mais as empresas e diminui significativamente a competitividade de importantes setores, como o agronegócio.
“As medidas, por terem um perfil confiscatório, são um retrocesso, impactando fortemente os recursos financeiros das companhias, ampliando custos e reduzindo a rentabilidade de toda a cadeia do agronegócio, que é fundamental para garantir a segurança alimentar em todo o planeta, além de contribuir com o desenvolvimento social e econômico do país e para o superavit de nossa balança comercial”, completou a nota.
A Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim), por sua vez, enfatizou que a medida eleva a insegurança jurídica da indústria química. O presidente executivo da entidade, André Passos Cordeiro, ressaltou no comunicado, divulgado na quinta-feira (6), que, além de a medida vir em um momento de grande fragilidade da indústria química brasileira, “essa decisão vai totalmente na contramão de iniciativas que o atual governo vem tomando acertadamente no sentido de promover a neoindustrialização no país”. A Abiquim pretende, inclusive, entrar com medida judicial contra a MP.
Já o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) disse ter recebido a MP com preocupação. “Essas medidas representam impacto tributário significativo para as empresas, prejudicando a competitividade, com perda de mercados, e desestimula os investimentos”, declarou, em nota.
“Sendo assim, a MPV 1227 terá efeito contrário ao pretendido com a desoneração da folha de pagamentos, podendo acarretar na perda de empregos de vários setores da economia, inclusive daqueles que não são beneficiados pela desoneração”, conclui a nota.
O presidente do Ibram, Raul Jungmann, afirmou que a intenção é reunir de “70 a 80 entidades” e “peticionar para que o presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco, devolva essa medida provisória, porque é inconstitucional, porque afeta os interesses nacionais e de praticamente todas as atividades econômicas que hoje operam no Brasil”, sustentou, em entrevista à um canal de TV a cabo.
Presidente da CNI abandona comitiva durante viagem à China
A contratação de nova crise, de proporções “atômicas” pelo governo, só piora o já deteriorado clima econômico e político. O impacto da MP foi devastador. O presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Ricardo Alban, que participava de uma comitiva de empresários e de autoridades do governo — incluindo o vice-presidente da República, Geraldo Alckmin —, em visita à Arábia Saudita e à China, interrompeu a viagem e retornou para o Brasil em protesto contra a MP. Ele deverá chegar ao país até amanhã, de acordo com a assessoria. Outros empresários pretendiam fazer o mesmo, mas evitaram devido ao custo elevado da antecipação do retorno de toda a comitiva.
Pelos cálculos da CNI, a medida provisória causará perdas de R$ 29,2 bilhões ao setor industrial neste ano, passando para R$ 60,8 bilhões, em 2025.“Chegamos ao nosso limite. Nós somos um vetor fundamental para o desenvolvimento do país e vamos às últimas consequências jurídicas e políticas para defender a indústria no Brasil”, disse Alban, no comunicado da entidade. “Não adianta ter uma nova e robusta política industrial de um lado se, do outro, vemos esse ataque à nossa competitividade”, ressalta a nota.
A reportagem do Blog do Zé Dudu apurou que uma das maiores inquietações com a edição da MP mira o ministro da Fazenda, considerado pelo setor produtivo “uma das únicas, senão a única voz que tem tentado equilibrar a ordem suprema de arrecadas para gastar do governo”.
Como a MP não foi objeto de consulta preliminar e é quase impossível o presidente Lula não ter avalizado a medida apresentada pelo ministro Fernando Haddad, ficou no “ar” uma desconfiança quanto a atitude do ministro, “o que é muito ruim para o governo”, avaliou um importante deputado federal à reportagem.
Repercussão política
Após a reação em cadeia à “bomba atômica” do texto da Medida Provisória n° 1.227/2024, os celulares de senadores e líderes partidários no Senado não pararam mais de tocar. Eram os principais empresários e industriais do país pedindo pressa para um encaminhamento da situação criada pelo governo. Como a MP tem efeito de lei imediato se for acolhida no Congresso, “não há tempo a perder”, cobraram dos políticos, os empresários.
Convocados às pressas, após reunião dos líderes dos partidos no Senado Federal, na quinta-feira (6), os senadores comprometeram-se a buscar alternativas para a compensação da desoneração da folha de pagamento dos 17 setores intensivos em mão de obra e dos municípios.
Segundo o líder do União Brasil, Efraim Filho (União-PB), o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), solicitou à consultoria da Casa um estudo sobre o impacto da MP sobre o setor produtivo. Além disso, conforme Efraim, o governo se comprometeu em se aprofundar no tema.
“Recebemos uma grande inquietação por parte do setor produtivo. O colégio de líderes se comprometeu a se debruçar sobre os impactos reais dessa MP”, afirmou Efraim.
“O relator Jaques Wagner também se comprometeu a, junto com o Ministério da Fazenda, ter um estudo mais elaborado do real impacto dessas medidas. O projeto está em suspenso aguardando os estudos para compor o relatório do senador Jaques Wagner”, acrescentou Efraim.
Fontes afirmaram que o Ministério da Fazenda já está trabalhando para entregar o estudo de impacto em breve aos parlamentares. Além disso, membros da pasta disseram que haverá um olhar acurado para o setor da exportação, que é afetado pela medida.
A pasta entende que o limite às compensações de PIS/Cofins era a única medida viável para conseguir uma arrecadação de quase R$ 26,3 bilhões neste ano. Outras possibilidades foram estudadas, como aumentar a CSLL dos bancos, mas foram descartadas, porque teriam um impacto muito forte e precisariam cumprir noventena.
Medidas mencionadas por congressistas, como a repatriação de ativos, por exemplo, seriam insuficientes segundo membros da Fazenda, já que geraria uma arrecadação de cerca de R$ 1 bilhão.
A líder do PP no Senado, a senadora Teresa Cristina (MS) afirmou que a medida encaminhada pelo governo vai impactar os investimentos no país.
“O caminho que o setor produtivo de vários setores entende é que você não pode resolver um problema gerando um problema muito maior. Agora, precisa conversar com o governo e eles têm que dar as alternativas. Você fazer a reoneração [desoneração] e reonerar do outro lado R$ 29 bilhões é muito ruim. Então essa conversa precisa ser feita porque isso é um desestímulo a investimentos no Brasil”, avaliou a senadora.
Após suspender decisão liminar que anulou a desoneração da folha de pagamentos em abril, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Cristiano Zanin, deu 60 dias para o Congresso votar projetos de lei formalizando o acordo da desoneração dos 17 setores e dos municípios.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), firmaram então um acordo em torno de um projeto de lei que prevê a manutenção da desoneração neste ano e do aumento progressivo da cobrança a partir de 2025. Atualmente, o modelo de desoneração da folha permite o pagamento de alíquotas de 1% a 4,5% sobre a receita bruta.
A alíquota dos setores contemplados passará a ser de 5% sobre a folha de salários em 2025; 10% em 2026; 15% em 2027; e 20% (valor cobrado hoje das demais empresas que não são alcançadas pela desoneração) em 2028.
O modelo de desoneração da folha de pagamentos de setores da economia foi instituído em 2011, como forma de estimular a geração de empregos pelo governo da petista Dilma Rousseff. Desde então, foi prorrogado diversas vezes. É um modelo de substituição tributária, mais adequada a setores intensivos em mão de obra. Juntos, os 17 setores da economia beneficiados pela desoneração geram cerca de 9 milhões de empregos.
No ano passado, o Congresso prorrogou a medida até o fim de 2027. Além disso, estabeleceu que municípios com população inferior a 156 mil habitantes poderão ter a contribuição previdenciária reduzida de 20% para 8%. O texto, no entanto, foi vetado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mais tarde, o veto presidencial foi derrubado pelo Congresso e, como resposta, o Executivo enviou uma medida provisória prevendo novamente o fim dos dois tipos de desoneração, entre outros pontos da agenda fiscal.
Quem é Fernando Haddad
O advogado e economista Fernando Haddad foi escolhido pelo próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para estar à frente do Ministério da Fazenda, a partir de 2023.
Nascido em São Paulo, 59 anos, Haddad foi prefeito de São Paulo (2013-2017), ministro da Educação (2005-2012), integrou o Ministério do Planejamento (2003-2004) e concorreu às eleições presidenciais em 2018.
Se formou em Direito, especializou-se em Direito Civil, é mestre em Economia e doutor em Filosofia, todos pela Universidade Federal de São Paulo (USP). Na mesma instituição de ensino, foi professor de Teoria Política Contemporânea do Departamento de Ciência Política.
Em sua trajetória, Fernando Haddad também foi analista de investimentos do Unibanco (1986); consultor da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas – Fipe (1988), período em que idealizou a Tabela Fipe; e subsecretário de Finanças e Desenvolvimento Econômico de São Paulo (2001-2003), na gestão de Marta Suplicy. Deixou o cargo após ser convidado pelo então ministro do Planejamento, Guido Mantega, para integrar a equipe técnica da pasta, como assessor especial, para ajudar a estruturar a Lei das Parcerias Público-Privadas (PPPs).
Após ser anunciado como ministro da Fazendo, em entrevista à imprensa, Haddad apontou alguns temas que tratará como prioridades quando assumir a pasta: definição de nova regra fiscal, retomar os acordos internacionais e a Reforma Tributária.
* Reportagem: Val-André Mutran – Correspondente do Blog do Zé Dudu em Brasília.
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