Sob pressão pública, ala do STF se sente incomodada e busca apoio para a “volta à normalidade”

Jornalões exigiram que ministros cumpram a Constituição; Elon Musk leva censura brasileira ao Congresso americano; Lira ameaça CPI e Bolsonaro convoca novos atos contra censura
Na foto, no sentido horário, o presidente da República Lula, e os ministros do STF Gilmar Mendes, Flavio Dino e Alexandre de Moraes. (Arte: Blog do Zé Dudu)

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Brasília – Uma ala de membros do Supremo Tribunal Federal (STF), liderada pelo decano Gilmar Mendes, está incomodada com a pressão pública doméstica e internacional sobre algumas polêmicas e questionáveis decisões da Corte e procura “apoio institucional” de outros Poderes para que tudo “volte à normalidade”.

Como se sabe, decisões do STF são de última instância, ou seja, cabe ao colegiado da Corte Suprema brasileira a palavra final em tudo, mas não a de legislar, como vem agindo deliberadamente. Mas, a pressão que não quer e se acredita que não vai se calar, está focada nas decisões do ministro Alexandre de Moraes sobre a liberdade de expressão e livre arbítrio dos brasileiros de se expressarem sem amarras nas redes sociais.

O Inquérito das Fake News, que dentre outras aberrações jurídicas contém o Inquérito das Milícias Digitais, todos tocados em sigilo judicial pelo ministro do STF e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, insiste em acuar apenas um dos lados da moeda política, desequilibrando todo o processo do debate democrático.

A validade dos inquéritos está sendo sucessivamente prorrogada há cinco anos, e o Procurador-Geral Federal, Paulo Gonet Branco, assim como o seu antecessor, parece não existir, o que torna tais inquéritos inconstitucionais na origem, conforme já se manifestaram em dezenas de artigos prestigiados juristas e professores de Direito Constitucional.

Com um atraso de pelo menos cinco anos, uma das instituições que compõem o arcabouço democrático mundo afora – a Imprensa tradicional –, resolveu reagir. 

Dois tradicionais jornais impressos do país – a Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo – publicaram, no final de semana passado, editoriais críticos à atuação do STF a respeito de como reage a críticas e determina censura a algumas pessoas na internet. Já o carioca O Globo fez um editorial a favor do projeto de lei que tentará coibir notícias falsas nas redes sociais.

Tal projeto já teve sinal verde no Senado, mas o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), disse que criará um Grupo de Trabalho para elaboração de um novo texto, uma vez que, segundo o entendimento de líderes partidários da Casa, o texto oriundo do Senado é uma colagem grosseira e sem sentido de normas vigentes e fere a boa técnica legislativa, um dos critérios analisados na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) para avalizar a tramitação de um projeto.

Folha

No sábado (13), o centenário jornal paulista publicou um editorial no qual cita nominalmente o ministro Alexandre de Moraes. O texto “Censura promovida por Moraes tem de acabar” (disponível apenas para assinantes), diz que é inconstitucional “impedir alguém de se expressar nas redes sociais” e que o certo é punir o que é publicado apenas “após devido processo legal”.

Trecho do editorial destaca: “Um ministro do Supremo Tribunal Federal, com decisões solitárias em inquéritos anômalos — conduzidos pelo magistrado e não pelo Ministério Público, o órgão competente —, reinstituiu a censura prévia no Brasil. Ordens secretas de Alexandre de Moraes proíbem cidadãos de se expressarem em redes sociais. O secretismo dessas decisões impede a sociedade de escrutinar a leitura muito particular do texto constitucional que as embasa. Nem sequer aos advogados dos banidos é facultado acesso aos éditos do Grande Censor. As contas se apagam sem o exercício do contraditório nem razão conhecida”.

O jornal paulistano se refere a casos em que Alexandre de Moraes determinou não apenas a remoção de conteúdo das redes sociais nos últimos anos, mas também que alguns usuários fossem banidos de usar a internet para expressar suas opiniões. Isso se deu em algumas ocasiões, sobretudo durante o processo eleitoral de 2022.

Ao determinar a redes sociais como o X (ex-Twitter), e ainda Facebook e Instagram (Meta), Rumble, Telegram, Tik Tok e YouTube (Google), a remoção de conteúdos e o bloqueio de contas, o ministro não explicava em detalhes a razão da decisão e dizia que o despacho deveria ser mantido em sigilo. Uma dessas ordens pode ser lida aqui.

No meio de seu editorial, entretanto, a Folha faz uma ressalva relevante: “Urgências eleitorais poderiam eventualmente justificar medidas extremas como essas. O pleito de 2022 transcorreu sob o tacão de um movimento subversivo incentivado pelo presidente da República. Alguns de seus acólitos nas redes não pensariam duas vezes antes de exercitar o golpismo. Mas a eleição acabou faz mais de 17 meses e seu resultado foi, como de hábito no Brasil, rigorosamente respeitado. O rufião que perdeu nas urnas está fora do governo e, como os vândalos que atacaram as sedes dos três Poderes em 8 de janeiro de 2023, vai responder pela sua irresponsabilidade”.

Com essa explicação, o jornal chancela, em certa medida, a atuação da Justiça, sobretudo do TSE, impondo censura prévia durante o período eleitoral passado. Apesar de ter condenado em editorial os amplos poderes que a Justiça Eleitoral se autoatribuiu em outubro de 2022 (no texto “Censor Eleitoral”, por exemplo, também para assinantes), quando foi disseminado o conceito de “desordem informacional” – popularizado pelo então ministro do STF e atual ministro da Justiça, Ricardo Lewandowaki – o diário paulista deixou de dar amplo destaque a algumas decisões teratológicas do TSE naquele ano.

Sob Alexandre de Moraes, a Justiça Eleitoral mandou cortar um trecho de propaganda televisiva de Jair Bolsonaro (PL). Era uma frase de Marco Aurélio Mello, ministro aposentado do STF: “O Supremo não o inocentou [Lula]. O Supremo assentou a nulidade do processo-crime, o que implica o retorno à fase anterior, à fase inicial”. Em suma, Mello relatava apenas um fato: o então candidato a presidente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não havia sido inocentado de nenhum crime pelo qual havia sido condenado antes em diversas instâncias por causa da Lava Jato. Havia apenas a determinação para que os processos começassem novamente. Na Folha, na época, o episódio foi relatado neste texto, no qual não estava explicada a razão da interrupção nem qual havia sido a frase suprimida.

O Estado de S. Paulo (Estadão)

O também centenário Estadão publicou, no último domingo (14), o editorial “A legítima crítica ao Supremo”. No texto, o diário paulistano é menos contundente do que a Folha. Apega-se mais a uma atitude recorrente do Judiciário, com magistrados confundindo críticas com ataques ou ameaças.

“Ao contrário do que parecem pensar alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), criticar instituições democráticas não é necessariamente atacá-las ou ameaçá-las. Tampouco exigir sua autocontenção é ser extremista, e demandar que atuem conforme a lei não é deslegitimá-las. Ao contrário, quem faz tudo isso de boa-fé quer aperfeiçoá-las, isto é, quer instituições que não sejam ativistas, partidárias, arbitrárias, corporativistas ou pessoais,” escreve o Estadão.

O fato é que o uso das expressões “ataque” e “ameaça” como sinônimo de “crítica” tem sido comum na mídia tradicional, inclusive no próprio Estadão (aqui e aqui). A palavra “ataque” é reservada para quando há um indício claro de agressão física. Frases ou ofensas na internet são tratadas como “críticas”.

Em trecho do editorial, o Estadão conclui que: “Portanto, quem tem minado a legitimidade do Supremo é o próprio Supremo, quando atropela sua própria jurisprudência, atua de modo claramente político, colabora para a insegurança jurídica e imiscui-se em questões próprias do Legislativo”.

Para o jornal, a “algaravia bolsonarista” é “de fato golpista e antidemocrática” e essa característica da disputa política tem sido “usada pelos mais loquazes ministros do Supremo como prova de uma alegada ameaça permanente e generalizada à democracia, justificando dessa forma medidas juridicamente exóticas, quando não inteiramente desprovidas de base legal, para conter essa ameaça”.

No final de seu editorial, conclui: “O Brasil testemunhou um surto de golpismo no 8 de Janeiro, mas hoje as instituições estão, como se diz, funcionando […] Por que o Supremo segue em mobilização permanente, como se o país vivesse num 8 de Janeiro interminável? São questões legítimas, que nada têm de extremismo. Demandar a contenção do Supremo não é ser golpista, é só ser republicano”.

Em suma, tanto Folha como Estadão seguem adeptos da teoria propagada pela Polícia Federal e abrigada pelo STF de que o Brasil estava a milímetros de ter sido alvo de um golpe de Estado – que teria quase sido perpetrado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro ou pelos baderneiros que depredaram prédios públicos em 8 de janeiro de 2023.

O Globo

O diário carioca é uma das empresas do maior conglomerado de mídia no Brasil. É também a empresa de mídia que mais se beneficiou de verbas de publicidade com a volta de Lula ao poder, liderando o ranking de propaganda estatal federal em 2023.

Teve sua imagem arranhada quando seu principal âncora, o jornalista William Bonner, inocentou Lula ao entrevistá-lo nas sabatinas com os candidatos da eleição de 2022, ao afirmar: “O senhor não deve nada à Justiça”.

O Globo ainda não fez um editorial nos dias mais recentes sobre liberdade de expressão. O que motivou Folha e Estadão foi o embate entre o empresário Elon Musk, dono do X (ex-Twitter), e o STF, tendo como alvo preferencial Alexandre de Moraes. Musk acusa o STF de tomar decisões inconstitucionais, contra a liberdade de expressão no Brasil. O Supremo nega que seja esse o caso.

Em vez de expressar sua opinião sobre o tema do momento – se o STF está seguindo a Constituição ao bloquear por completo o acesso de algumas pessoas às redes sociais –, o Globo fez um editorial no domingo (14), abordando outra polêmica: “É um erro atrasar aprovação do PL das Redes Sociais”, tema francamente defendido pelo governo.

Nesse texto, o jornal apenas trata de um tema de interesse direto do governo Lula, e sobre o qual a oposição, sob Jair Bolsonaro, tem aversão: a regulamentação das redes sociais, que ficou conhecida como projeto de lei das fake news.

“Depois de longo debate, o Projeto de Lei (PL) de Regulação das Redes Sociais, aprovado pelos senadores, estava maduro na Câmara no início do ano passado. A última versão do relator, deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), prevê a responsabilização de empresas digitais por conteúdos criminosos publicados por usuários, desde que comprovada negligência. Também estabelece prazos para cumprimento de decisões judiciais, promove transparência nas decisões e dá aos afetados pelas decisões o direito de contestá-las. Para evitar censura arbitrária, atribui às próprias plataformas a formulação de regras e da estrutura de governança necessária para fazê-las cumprir. O texto alcança um equilíbrio virtuoso entre as necessidades de proteger a livre expressão e de coibir abusos,” defendeu o editorial do Globo.

Em seguida, emenda: “Por isso é incompreensível a decisão do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), de abandoná-lo depois da crise entre Elon Musk, dono da plataforma X (ex-Twitter), e o Supremo Tribunal Federal. Não se podem confundir as decisões controversas da Corte com a necessidade imperativa e urgente de regular as redes. E, se há um foro com legitimidade para isso, é o Congresso”. É uma referência à decisão do presidente da Câmara de criar um GT para tratar do tema, o que certamente retardará a aprovação da lei.

O diário O Globo argumenta que os adversários do PL das fake news “confundem propositalmente seu objetivo. Acusam-no de promover censura, quando o texto não impõe nenhuma restrição à liberdade de expressão além das já previstas em lei há décadas. Decisões duras da Justiça ao suspender contas e posts surgem num vácuo jurídico. Falta uma lei atribuindo às plataformas o dever de zelar pelo conteúdo. É disso que se trata”.

Quando afirma que contas em redes sociais são bloqueadas e seus donos são proibidos por tempo indefinido de se manifestar nessas plataformas, o jornal não explica por que isso estaria “num vácuo jurídico”. Muitos especialistas em direito acham que não há vácuo. O STF  simplesmente não poderia banir pessoas por tempo indeterminado de se expressarem na internet.

Na realidade, o PL das fake news nunca esclareceu dois pontos relevantes sobre essa eventual lei:

  1. como seria o critério objetivo para definir o que é verdade e o que é mentira (deixar a decisão para critérios próprios das redes sociais e empresas de tecnologia, as big techs (empresas de tecnologia que atuam como empresas de comunicação e propaganda), não resolveria o problema);
  2. uma vez decidido o critério, quem teria poder para arbitrar caso a caso sobre o que é fato ou inverdade.

Há um terceiro ponto também controverso: ofender com palavras uma instituição, um magistrado ou qualquer autoridade seria considerado um crime a ponto do autor ter de ser banido da internet? Um dos maiores especialistas e defensores da liberdade de expressão no Brasil, o ex-deputado federal e advogado Miro Teixeira (PDT-RJ) entende que ir à frente do Congresso e pedir que o Poder Legislativo seja fechado não é crime, mas livre exercício de liberdade de expressão. Miro também entende que no 8 de Janeiro a democracia não correu risco.

Blindagem

Na última segunda-feira (15), na casa do ministro Gilmar Mendes, em Brasília, o tema principal do convescote foi o STF. O presidente Lula ouviu as queixas dos interlocutores, cujo tom foi de preocupação com o avanço das reclamações e principalmente com a constatação de falta de ação por parte de políticos mais alinhados para blindagem do tribunal.

A percepção de que o clima vem se deteriorando em relação ao STF se acentuou após as acusações por parte de Elon Musk contra Moraes sobre censura, ao criticar ordens de bloqueio de contas na rede social X.

Além do presidente da República, estavam presentes os ministros Flávio Dino, Cristiano Zanin e Alexandre de Moraes, o principal alvo de críticas no Congresso. Lula foi acompanhado dos ministros Ricardo Lewandowski (Justiça) e Jorge Messias (Advocacia-Geral da União).

No jantar, os ministros pediram ao presidente da República maior empenho do governo em defesa da democracia e do próprio Supremo, explicitando a visão de que a corte está sob ataque.

Também listaram medidas do Congresso que acabam por exigir uma resposta do Judiciário e elevam a tensão entre os Poderes. Entre os exemplos citados estão o marco temporal das terras indígenas, o projeto que acaba com as saídas temporárias de presos e a proposta para criminalização do porte de drogas – este na contramão da tendência de descriminalização da maconha para uso pessoal, em avaliação pelo STF.

Menos de 24 horas depois desse encontro, o Senado aprovou, na terça-feira (16), em primeiro e em segundo turnos, a proposta que coloca na Constituição a criminalização de porte e posse de drogas, em reação ao julgamento do STF.

Lula teria concordado com a necessidade de maior ajuda da base governista. Mas essa conversa não tinha como objetivo a adoção de medidas práticas. Outros encontros semelhantes deverão ocorrer nas próximas semanas, para novas avaliações de cenário.

O presidente do tribunal, Luís Roberto Barroso, não participou do jantar. Ele se indispôs com Gilmar Mendes e Moraes em julgamentos nos últimos meses, colocando em risco seu poder de articulação no tribunal na posição de chefe da corte. Ele disse, na última segunda, que considera “assunto encerrado” a questão envolvendo o empresário Elon Musk.

O jantar aconteceu sob as supostas ameaças do presidente da Câmara, Arthur Lira, de colocar em votação projetos que desagradam tanto o Judiciário como o Executivo.

Mendes, o ministro mais antigo do STF, disse que uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a Suprema Corte é “inadmissível” e “inconstitucional”.

“A princípio, uma CPI que investigasse atos do Supremo Tribunal Federal seria inadmissível. Seria inconstitucional,” afirmou o decano do Supremo em entrevista ao SBT divulgada na quinta-feira (18). O ministro também disse não acreditar que Arthur Lira “tenha se pronunciado no sentido” de ser a favor de uma CPI para investigar o STF.

“Tenho a impressão de que a gente deve separar aquilo que é ruído, eventualmente é borbulha, é espuma, do que aquilo que efetivamente é sinal. Entendo que aqui há muita borbulha. Há muito ruído, desinformação, fake news. Mas isso não corresponde à realidade,“ disse.

O embate com o Legislativo não é novo. Começou em 2023 e ganhou força depois de uma declaração do atual presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso. Em um evento da União Nacional dos Estudantes (UNE) em 12 de julho de 2023, o ministro – que na época era vice-presidente da Corte – disse: “Lutei contra a ditadura e contra o bolsonarismo […] Nós derrotamos a censura, nós derrotamos a tortura, nós derrotamos o bolsonarismo para permitir a democracia e a manifestação livre de todas as pessoas”.

A frase “nós derrotamos o bolsonarismo” irritou o Congresso, que tem maioria conservadora, e, principalmente, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que avaliou que a Corte pouco fez para diminuir a temperatura na relação entre os poderes.

Por Val-André Mutran – de Brasília