Um cemitério é, também, lugar de história. E o Cemitério São Miguel, na Marabá Pioneira, tem muita coisa para contar. Ou melhor, tinha, porque aos poucos ele está silenciando. Isso porque os túmulos estão sendo violados, as fotos arrancadas, letras quebradas ou apagadas. Além disso, a ação do tempo também se encarrega de deletar o pouco que ainda resta com identificação.
O túmulo de Odílio Maia, por exemplo, filho de Antônio da Rocha Maia, que faleceu na década de 1970, já não há mais identificação e nem seus parentes conseguem encontrá-lo no denominado “campo santo”. Também ficou perdido entre as quatro paredes do cemitério São Miguel, o túmulo de Afro de Araújo Sampaio, membro da Junta Governativa criada em 1913 para administrar Marabá.
Por outro lado, o túmulo de João Anastácio de Queiroz, que era contemporâneo de Afro Sampaio e seu colega na Junta Governativa, é um dos poucos que ainda têm identificação entre os que morreram nas três primeiras décadas após a emancipação do município.
Mas mesmo assim, o caso de João Anastácio – que também foi prefeito de Marabá por quatro mandatos – merece uma avaliação particular. Seu túmulo está localizado em local de destaque na entrada do Cemitério São Miguel, no corredor central. Mas os sinais de depredação são visíveis e a imagem que existe do maranhense de Carolina está se apagando. Uma placa fabricada em louça indica que João Anastácio nasceu em 8 de agosto de 1884 e morreu 19 de julho de 1945. Há ainda uma inscrição na lápide: “Aqui jaz em paz o Cel João Anastácio de Queiroz. Eternamento em voz está um sentimento de saudades infinda que em tempo algum, jamais, se apagará, magoando a dor por te querermos ainda. Foste na terra um dedicado esposo, amigo inconfundível em lealdade, foste, também, o pai bem extremoso, e foste o exemplo reto da verdade”.
O túmulo de João Anastácio também recebe uma criança, provavelmente sua neta. Ela nasceu em 1º de maio de 1976 e morreu em 7 de julho de 1979. Uma foto da garota, sorridente, está cravada na mesma lápide, dando a entender que ela fora enterrada 33 anos depois no mesmo túmulo do avô.
Embora a sepultura de João Anastácio esteja com algumas avarias, é uma das poucas – muito poucas – que ainda possuem identificação. Outras não têm cruz e nenhum tipo de inscrição, mas é possível observar que a falta de uma vigilância permanente no local, com o passar dos anos os túmulos foram sendo depredados e violados.
Também depredado pela metade está o jazigo de Wadi Moussallem, membro do primeiro Conselho de Vogal, eleito em 1920. Ele nasceu em 1872, na Líbia, e morreu em 29 de abril de 1955, em Marabá.
No túmulo de Sérvulo Brito ainda resiste uma foto e uma inscrição forjada em mármore, mas há sinais de que se não houver cuidado e conservação, sua memória vai desaparecer no cemitério e restará apenas o nome da Rua no Bairro Cidade Nova. No Memorial Político existente da Câmara Municipal, não figura nem mesmo uma imagem de Sérvulo Brito, que nasceu em 1898 e morreu em 1950, enquanto exercia o cargo de vereador.
Sem identificação
Um levantamento feito pela Reportagem do blog dentro do cemitério São Miguel, na última semana, aponta para a existência de mais de 150 túmulos antigos sem nenhum tipo de identificação, além de outras dezenas com identificação parcial, com apenas nome, ou com foto, mas sem nenhuma inscrição que possa revelar a pessoa que foi enterrada ali.
É o caso, por exemplo, do túmulo da professora Judith Gomes Leitão, sobrinha de Carlos Leitão, um dos fundadores de Marabá. A educadora que deu nome a uma das escolas mais antigas da cidade, ganhou um túmulo em mármore, mas ele foi depredado por vândalos e a única inscrição que indica seu nome parece ter sido escrita com dedo melado de tinta.
Em outra sepultura, ali próximo, o de sua irmã Julieta Gomes Leitão e Walter Leitão Sampaio tiveram a mesma sina. Apesar da pintura nova, os nomes de ambos estão quase desaparecendo porque nenhum pincel passou por ali.
O Jazigo da Família Santis, onde estão sepultados o patriarca Silvino Santis, o cartorário Antônio Santis, Tereza Mascarenhas Santis, Benito de Araújo Santis, entre outros, as fotografias gravadas em louça estão trincadas e uma delas foi levada por ladrões.
Está na hora de criar um projeto de restauração e conservação de sepulturas dos pioneiros do município como uma forma de valorização da história. Talvez, ampliar e convidar familiares para ajudar na identificação daqueles que estão sem nenhuma inscrição, tanto no Cemitério São Miguel, quanto no da Saudade, na Folha 29.
Cemitério Internacional
Pouca gente imagina que o combalido e esquecido Cemitério São Miguel, encravado em uma travessa estreita, com menos de sete metros de largura, à margem do Rio Itacaiunas, na Marabá Pioneira, tenha enterrado pessoas de várias nacionalidades.
É que as guerras que afetaram países árabes, no final do século XIX, acabaram afugentando muita gente daquela região e milhares de familiares escolheram se refugiar no Brasil. E o Pará foi o destino de centenas de famílias, muitas das quais foram morar em Belém, mas outras optaram por Marabá.
Para cá, vieram famílias da Turquia, Síria, Líbano, entre outros países. Eles se aventuraram na extração do caucho e depois na coleta e comercialização de castanha-do-pará.
Wadi veio no pacote dos Moussallem; Mellhen Abraão foi o representante dos Behambouny, tendo falecido em Marabá em 1921. A lápide escrita em seu túmulo está em língua síria e não sabemos se existe em Marabá alguém que possa traduzir o texto que até hoje permanece erguido no São Miguel.
Mas outras famílias de árabes também se assentaram em Marabá e conquistaram um lugar não apenas no comércio local, mas também na política. É o caso dos Mutran, Amoury, Matne e Salame. Os Mutran vieram no rastro de Kalil, nascido em 1875 e falecido aqui em 1952. E todas essas famílias têm representantes enterrados no primeiro cemitério de Marabá. É história viva cujas páginas estão ficando esmaecidas no grande livro do Cemitério São Miguel. Falta alguém que resolva restaurá-lo e transformar aquele campo santo em um local de história para a atual e futuras gerações.