Como num sprint em final de corrida, quando o atleta, por mais exausto que possa estar, buscará energia, muitas vezes sem saber de onde, para uma arrancada forte rumo ao final da prova, o governo tentará aprovar as pendências de sua agenda econômica na última semana do ano legislativo. Sabe que, se não o fizer, terá dificuldades dobradas em 2024 — ano de eleições municipais — quando, senadores e deputados não estão de bom humor para qualquer corte de recursos.
O Congresso Nacional trabalha até a próxima sexta-feira (22), em seguida, entra em recesso só retornando os trabalhos em 1° de fevereiro de 2024.
Está na Ordem do Dia convocação de sessão conjunta do Congresso Nacional para quarta-feira (20). Estão prontas para votação a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias), uma prévia do orçamento e a LOA (Lei do Orçamento Anual), o orçamento em si. A LDO teria que ter sido votada em junho, mas a confusão da pauta econômica inviabilizou sua aprovação.
Outra matéria considerada essencial pelo governo é a aprovação da Medida Provisória (MP n° 1.185/2023), da subvenção do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), pendente de votação no Senado. Se aprovada, será como um prêmio de consolação ao governo depois das derrotas da semana passada. Os vetos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao marco temporal das terras indígenas e à desoneração de 17 setores caíram por ampla maioria e desarmaram em grande parte, os planos do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em busca de recursos para bancar o défict zero no ano que vem.
Mesmo se aprovado, o texto da MP que vai à votação foi desidratado no Congresso. O governo queria arrecadar até R$ 35 bilhões. Hoje, cálculos feitos por empresas de lobby que circulam em Brasília dizem que a MP só renderá R$ 11 bilhões. O sonho do déficit zero está cada vez mais distante no horizonte.
Milagre ou muito dinheiro
A frase predileta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT): “O nunca antes visto na história desse país”, é perfeita para ilustrar o que ocorrerá na votação dos relatórios finais da LDO e LOA, já aprovados na Comissão Mista do Orçamento na semana passada.
Só um milagre ou muito dinheiro — que não tem —, salvaria o governo do que está por vir.
Deputados e senadores aumentaram o dinheiro das emendas parlamentares e mais: impuseram um dispositivo no texto para controlar os prazos de execução e pagamento das emendas, em detrimento do planejamento do Executivo. Restaria ao governo nesta semana mudar o texto, mas, fontes ouvidas pela reportagem do Blog do Zé Dudu, acham essa possibilidade remota, por uma razão simples: “o governo, ao longo do ano, não cumpriu a maioria dos acordos com os congressistas, o que gerou toda essa tensão vista agora no final do ano”, explicou um deputado consultado.
Há aqui, mais uma evidência que corrobora as inúmeras reportagens publicadas aqui no blog, que apontaram, quando ocorreu, uma falha com as consequências, agora acumuladas, pela coordenação política do governo, sob a responsabilidade do deputado federal licenciado que assumiu a Secretaria de Relações Institucionais, o paulista Alexandre Padilha. Fracassou também, o ministro-chefe da Casa Civil, o baiano Rui Costa.
Ambos, são apontados pelos senadores e deputados, da oposição ou os ditos independentes, os principais entraves hoje experimentado pelo governo na reta final do ano.
Conjuntura gera apreensão nos operadores do mercado
O ano está preste a encerrar com um misto de apreensão no mercado financeiro e congressistas furiosos com o governo que, segundo essa visão: “só pensa em gastar como se não houvesse amanhã”, como ilustrou um deputado da oposição.
Prestes a completar o primeiro ano de governo, o presidente Lula já está deixando sua marca nas contas públicas — e o quadro que se revela até agora confirma, em boa medida, as previsões negativas feitas por muitos analistas desde antes da posse, em janeiro.
“Não se trata de antipatia, mas de conhecimento como o PT se comporta a frente do comando do país”, disse o CEO de uma das maiores corretoras de valores do país.
Embora todos admitem “a perspicácia e capacidade de articulação política, Lula tem conseguido contornar mecanismos de controle de gastos, sem deixar brechas para contestações legais, e está gastando muito além do que poderia, tingindo o Orçamento de vermelho e encorpando a dívida pública”, aponta reportagem publicada nesta segunda-feira em um grande jornal de São Paulo (aqui, para assinantes).
Segundo a reportagem da editoria de economia do jornal, neste ano, se não houver nova revisão nos dados oficiais, o governo deverá fechar suas contas com um saldo negativo de R$ 203,4 bilhões, segundo o Banco Central (BC), o equivalente a 1,9% do PIB (Produto Interno Bruto), sem contar os juros da dívida pública.
Exceto pelo resultado de 2020, no auge da pandemia, o déficit de 2023 interrompe uma série de cinco anos de melhora na situação fiscal do País, iniciada em 2017, primeiro “ano cheio” do governo Temer, após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT).
A matéria destaca que Lula deu seu aval para o novo arcabouço fiscal, mas tem demonstrado desconforto com a meta prevista no dispositivo, de déficit zero em 2024.
Somando a esse resultado o valor gasto com o pagamento dos juros da dívida, o buraco no ano deverá ficar em torno de R$ 800 bilhões ou 7,5% do PIB, de acordo com estimativas feitas a partir dos números mais recentes do BC. Com isso, a dívida bruta, que havia caído para 72,9% do PIB em 2022, depois de atingir o pico histórico em 2020, está empinando de novo. Até o fim de outubro, conforme os dados do BC, já estava em 74,7% do PIB. E, de acordo com projeções de analistas de mercado, deverá continuar a crescer, chegando a 78,5% do PIB em 2025 e superando os 80% do PIB em 2026, no fim do governo Lula.
“Para o PT, o importante é o governo gastar para estimular a economia e fazê-la crescer”, diz Marcos Mendes, doutor em economia e pesquisador associado do Insper, uma escola de negócios, direito e engenharia de São Paulo. “Para eles, desajuste fiscal não leva ao aumento da inflação, ao aumento dos juros, ao aumento dos riscos, das incertezas. Déficit fiscal só tem o lado bom, porque as pessoas compram mais, as empresas investem mais, a economia roda. É assim que funciona a cabeça deles.”
Escolas econômicas a parte, a reportagem revela também que, embora o rombo de 2023 esteja dentro da “licença para gastar” que Lula obteve do Congresso antes mesmo de tomar posse, ele supera de longe o déficit de 0,5% do PIB, depois reajustado para 1% do PIB, prometido pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, ao longo do ano.
Como o presidente brecou qualquer iniciativa de contenção de gastos, as despesas acabaram sendo maiores do que as previstas por Haddad, e as receitas, menores, apesar de seu empenho em implementar sua pauta arrecadatória, para tentar reduzir o estrago causado pela gastança nas contas públicas.
“As medidas de aumento de arrecadação não surtiram o efeito que o ministro desejava”, afirma Rafaela Vitoria, economista-chefe do Banco Inter. “As despesas estão crescendo bem mais do que as receitas e o que preocupa é que não existe debate sobre a necessidade de controlar o aumento dos gastos.”
Haddad até corre atrás de receitas adicionais, já que não tem autorização do chefe para cortar despesas, com o objetivo de aliviar da melhor forma possível o déficit fiscal. Ainda que por vias tortas, por meio de medidas de aumento de impostos, algumas das quais dependendo de aprovação do Congresso, Haddad está tentando colocar um pouco de ordem na casa.
O problema é que, com a carga tributária na faixa de 35% do PIB, bem acima da média dos países emergentes, o espaço para o aumento da arrecadação e a realização do ajuste pelo lado da receita é relativamente pequeno. “Se o governo quisesse, haveria espaço para controlar despesas, mas existe pouca vontade para fazer isso”, diz Rafaela.
Mesmo concordando em manter a meta de déficit zero, Lula vem se empenhando junto ao Congresso, que deverá votar ainda nesta semana o Orçamento, para excluir o maior número possível de despesas do resultado primário, evitando o desgaste de negociar a mudança da meta mais à frente.
Foi o que aconteceu, por exemplo, com os investimentos de até R$ 5 bilhões das estatais no âmbito do novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), as despesas da bolsa para alunos de baixa renda do ensino médio, calculadas em R$ 20 bilhões, e os gastos com o seguro rural. Tudo isso foi excluído da meta.
Depois do impeachment de Dilma, com a adoção do teto dos gastos, que limitava as despesas de um ano às do ano anterior corrigidas pela inflação, o panorama fiscal se manteve mais ou menos sob controle. As despesas totais do governo nesse período caíram de forma significativa, de 19,9% do PIB em 2016 para 18,2% em 2022, com o congelamento dos salários do funcionalismo, a reposição parcial dos funcionários aposentados e a suspensão de concursos públicos. A reforma da Previdência, cujo rombo crescia em progressão geométrica, também deu uma forte contribuição para melhorar a situação. Além disso, a inflação e os juros, que na época de Dilma estavam em alta, vêm caindo de forma progressiva nos últimos meses.
“Nós sabemos que a situação fiscal não vai garantir a sustentabilidade da dívida pública, mas também não vai deteriorá-la muito. Agora, em algum momento, nós vamos precisar fazer um ajuste equivalente a 2% ou 2,5% do PIB para estabilizar o crescimento da dívida”, afirma o economista Luiz Fernando Figueiredo, presidente do conselho de administração da Jive Investiments e ex-diretor de Política Monetária do Banco Central. “Uma coisa que ajuda o Brasil é que o mundo também não está uma beleza do ponto de vista fiscal. Se houvesse um concurso internacional de bruxas, o Brasil com certeza não seria a bruxa mais feia da disputa”, diz.
O expediente tem levado vários economistas a dizer que a chamada “contabilidade criativa”, que prosperou no governo Dilma para mascarar a deterioração fiscal, está de volta à cena. Não por acaso, a média das previsões dos bancos, divulgada pelo BC no Relatório Focus mais recente, aponta para um rombo fiscal equivalente a 1% do PIB em 2024, bem acima da meta oficial. “Nós estamos de olho, não estamos deixando de ver o que está acontecendo”, diz Figueiredo.
LDO mantem meta do défict zero
O deputado federal Danilo Forte (União-CE), relator do projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), até manteve a meta de déficit zero, a pedido do governo. Mas estabeleceu um limite máximo de R$ 22,3 bilhões para contingenciamento de despesas, o que inviabilizaria o cumprimento da meta, segundo técnicos da Câmara, já que o governo terá de fazer um bloqueio de pelo menos R$ 56 bilhões para ficar dentro do limite de gastos previsto no arcabouço.
Cheque especial ilimitado
Algumas lideranças do Congresso estão dizendo que o texto final da lei orçamentária libera o governo de fazer qualquer contingenciamento de despesas para cumprir a meta. Na prática, isso significaria, se confirmado, que o Legislativo estaria concedendo a Lula um cheque especial ilimitado, para ele gastar como quiser, transformando o País numa espécie de “terra sem lei” no campo fiscal. A questão, de acordo com parlamentares que detectaram o problema, deverá ser alvo de questionamentos antes da votação da matéria pelo plenário e promete render muita controvérsia.
Nos últimos dias, Lula voltou a fazer profissão de fé no receituário heterodoxo adotado em seu segundo mandato, levado ao limite por Dilma em seu governo, ampliando ainda mais as incertezas dos analistas em relação ao futuro do arcabouço e da gestão fiscal do País.
Centrado na política do “gasto é vida”, como dizia Dilma, com o alegado objetivo de turbinar o crescimento econômico, sem preocupação com o efeito negativo que isso possa ter nos cofres do Tesouro, esse modelo é encarado por Lula e pelo PT como uma alternativa ao que o partido chama de “austericídio”, em referência a um suposto impacto sinistro que a austeridade fiscal geraria na economia, em prejuízo das empresas e dos cidadãos.
“Se for necessário este país fazer endividamento para crescer, qual o problema?”, afirmou Lula, em reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável, o Conselhão, realizada na semana passada, em Brasília. “Nós temos o caminho das pedras e temos de decidir agora se vamos retirar essas pedras ou não. Ou se a gente vai chegar à conclusão de que, por um problema da Lei de Responsabilidade Fiscal, de superávit primário, de inflação, não vai poder fazer (o que acha que tem de ser feito) e vamos todo mundo desanimar, voltar para nossa vidinha”, acrescentou o presidente, escancarando sua rejeição por dois princípios essenciais para a preservação da estabilidade econômica — o equilíbrio nas finanças públicas e a manutenção do poder de compra da moeda.
Curiosamente, como se fosse um movimento orquestrado, a fala de Lula se seguiu a declarações semelhantes de dirigentes e parlamentares do PT sobre o tema, realçando o benefício que a gastança do governo pode proporcionar para a legenda nas eleições municipais de 2024. O pleito é considerado essencial para alavancar a candidatura do presidente à reeleição e para ele garantir uma base mais amigável no novo Congresso, a ser eleito em 2026, caso seja o vencedor nas urnas.
“Se tiver que fazer déficit, vamos fazer, ou a gente não ganha a eleição em 2024″, afirmou o deputado petista José Guimarães (CE), líder do governo na Câmara, em encontro eleitoral promovido dias antes pelo partido, também em Brasília. “Do ponto de vista econômico, o instrumento que temos hoje para usar é a política fiscal. É o Estado forte, é o Estado indutor, é o Estado que gasta; porque senão vamos ficar na mão de Banco Central, na mão desses liberais de mercado”, disse a deputada Gleisi Hoffmann, presidente do PT, no mesmo evento.
Também presente ao convescote petista, Haddad até contestou a visão de Gleisi, argumentando que a existência de déficit fiscal não garante crescimento econômico, mas foi uma voz quase isolada no encontro. Nem a experiência fracassada de Dilma no governo, com resultados desastrosos na economia, parece suficiente para fazer Lula e o PT mudarem de ideia em relação ao modelo perdulário de gestão encampado pelo presidente e pelo partido.
“O pensamento econômico do PT é esse mesmo. A maioria das pessoas de esquerda não admite que as políticas adotadas na economia lá atrás foram a causa da grande recessão de 2015 e 2016″, diz Marcos Mendes. “Eles acham que tudo estava indo muito bem e que foi a Lava Jato, o processo de impeachment, alguma coisa no campo político que atrapalhou o projeto deles. Então, é natural que, ao voltar ao poder, retomem aquelas políticas que eles acreditam que estavam indo bem.”
* Reportagem: Val-André Mutran – Correspondente do Blog do Zé Dudu em Brasília.