Por Kleysykennyson de Oliveira Carneiro – Canaã dos Carajás
Sessões espíritas a parte, eu escrevo deste lugar em que me encontro. Não sei definir o que é aqui, mas sei que é tudo muito quieto e que não há mais ninguém. Já berrei e clamei por socorro várias vezes, mas ninguém veio ao meu auxílio. E não sei como, mas estou conseguindo escrever esta carta.
Aqui é muito frio. Dói a alma da gente, o silêncio estoura os meus tímpanos que sempre foram tão acostumados a ouvir vida. Não sinto cheiro de nada, simplesmente porque não há cheiro de coisa alguma. Não posso apalpar nada; não sinto coisa alguma.
Mas eu estou destruído.
Sinto tanta dor, meu fôlego é curto; eu mal respiro. Acho que são as sequelas dos meus últimos dias de vida.
Sei que estou definitivamente morto.
Veio um mar de lama em minha direção. Lama escura, densa, nefasta e venenosa. Antes de morrer, percebi que havia chumbo, boro, mercúrio, cobre, alumínio, ferro e bário misturados com o barro. As minhas águas fortes, minha correnteza firme, os meus peixes saudáveis, que acabaram com a fome de muita gente por milênios, não conseguiram resistir àquele despejo da tabela periódica sobre nós. Morremos todos sem menor chance de resistir.
Eu que havia sido, em vida, doce e cristalino, agora sou, em morte, podre e nebuloso. Tanta gente dependia de mim… E agora? O que vai ser delas?
O meu corpo continua lá, jogado, apodrecendo… Os corpos dos animais que me nadavam e me frequentavam, antes mesmo que houvesse gente por aqui, também estão lá apodrecendo. Alguns no meu antigo leito, outros seguindo mortos rumo ao mar. É uma devastação só.
Eu não culpo o progresso. Não, não. Não culpo o capitalismo. Não culpo ninguém.
Há tragédias que precisam acontecer para que algumas pessoas entendam que ferro não se come e que toda essa lama de rejeitos não se bebe.
Eu lamento tanto pelos meus queridos indígenas que há tanto tempo estão aqui e que dependiam de mim. Pra onde vão agora? Eu os trouxe de volta na época da ditadura, quando foram expulsos das minhas redondezas. Eu mostrei o meu poder e a minha ira quando mexeram onde não devia.
E agora eu estou morto. Eu era forte, mas contra uma enxurrada de lama daquelas nada se pode fazer.
E não foi por falta de aviso. Eu fui dando sinais de que eu ia desaparecer. Já havia assoreamento; eu sentia estar ficando mais raso… Mas nada havia me preparado para aquilo… Nunca tive receios de que um descuido desse tamanho poderia acontecer.
Mas isso, meus caros, foi apenas um acidente… Assim como eu, ninguém poderia prever uma catástrofe dessas. Foi um acidente… Poderia ter acontecido com qualquer um. Quando se está tão ocupado em ganhar dinheiro, não se tem tempo para coisas tão superficiais como rios, peixes ou plantas. Eu entendo.
E vocês, que choram a minha perda, precisam entender também.
Respirar está difícil.
Parece que tem lama até nos pulmões da minha alma. Fico esperando a minha catarse aqui, no além.
E a lama que me matou chegou ao mar.
O oceano já perdeu e ainda vai perder muitos filhos neste processo doloroso. Mas ele vai se recuperar. Ele é majestoso demais, poderoso demais… Ele vai se recuperar…
No entanto, há de se saber que o oceano guarda mágoas, e é vingativo… São duas coisas perigosas: poder e mágoa.
Eu teria medo de uma vingança se fosse vocês.
Mas eu já posso descansar.
Dessa vida eu, um antigo rio de águas doces, já parti.
Ps.: Rios Tocantins, Itacaiúnas e Parauapebas, cuidado com os acidentes. Ninguém pode prevê-los.
2 comentários em “Uma carta do Rio Doce (do além)”
Incrível! Muito bom mesmo!
Um belo texto. É difícil expressar em palavras o que é trágico. Você fez isso de forma poética. Parabéns.