Um nó górdio mantém sem solução de curto prazo a crise financeira que acomete as empresas aéreas em operação no Brasil. Depois de uma série de atrasos, o programa “Voa Brasil”, que prevê passagens aéreas ao custo de até R$ 200, deve finalmente decolar, afirma Silvio Costa Filho, ministro de Portos e Aeroportos. Enquanto isso, a pasta comandada por ele, além do ministério da Fazenda e do Turismo e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), “batem cabeça”, mas não estão conseguindo apresentar possíveis medidas para aliviar a crise das companhias aéreas brasileiras, que acumulam prejuízos nos últimos anos. Costa Filho afirmou, na semana passada, que o projeto vai sair do papel ainda neste mês de abril.
Inicialmente, a expectativa do governo federal era lançar o Voa Brasil em fevereiro deste ano, o que não foi possível. O programa foi idealizado pelo antecessor de Costa Filho na pasta, o ex-ministro Márcio França (PSB), que hoje comanda o Ministério do Empreendedorismo, da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte.
O ministro dos Portos e Aeroportos fez o anúncio durante sua participação no evento de lançamento de outro programa, o Asas para Todos, uma iniciativa conjunta entre a pasta e a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac).
De acordo com o governo, o Voa Brasil vai ofertar 5 milhões de passagens aéreas a R$ 200 para um público específico. Serão cerca de 21,7 milhões de brasileiros, dos quais 21 milhões de aposentados pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) que recebem até 2 salários mínimos (R$ 2.824), além de 700 mil alunos do Prouni.
Na linha do tempo, desde fevereiro, pastas como os ministérios de Portos e Aeroportos, do Turismo e da Fazenda, além do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), vêm estudando possíveis medidas para aliviar a crise das companhias aéreas brasileiras, que acumulam prejuízos nos últimos anos.
Estão sobre a mesa propostas como o abatimento de dívidas regulatórias, a renegociação de débitos tributários e, sobretudo, uma linha de crédito emergencial via BNDES. Para que ela seja viabilizada legalmente, no entanto, seria necessária a constituição de um fundo garantidor. Neste momento, há duas possibilidades sob análise: a utilização de recursos Fundo Nacional de Aviação Civil (Fnac), que já existe, ou a criação de um novo fundo, específico para as companhias aéreas e sem ligação com o Fnac, que poderia chegar a R$ 6 bilhões.
No Congresso Nacional, há projetos em tramitação que reabrem a possibilidade de empréstimos garantidos pelo Fnac para companhias aéreas — a permissão vigorou apenas em 2020, no primeiro ano da pandemia, para empréstimos de até R$ 3 bilhões. A proposta mais avançada no Congresso Nacional é o projeto de lei (PL n° 3.221/2023), de autoria do deputado Felipe Carreras (PSB-PE
O texto tramita em regime de urgência e está pronto para ser votado pelo plenário da Câmara. A proposta modifica a Lei nº 12.462 e permite “a utilização dos recursos do Fnac como lastro a garantias prestadas pela União em operações de crédito contratadas por prestadores de serviços aéreos”.
Já no Senado, há uma outra proposição de teor semelhante, o PL 1.829/2019, cujo autor é o ex-deputado Carlos Eduardo Cadoca (PE) — morto em 2020, vítima da Covid-19. O projeto, que está sendo analisado pela Comissão de Desenvolvimento Regional e Turismo (CDR) do Senado, recebeu substitutivo do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e promove uma série de mudanças na legislação que trata dos setores de turismo e transporte aéreo. O texto ainda determina que o Ministério do Turismo passe a gerir 30% dos recursos do Fnac.
“O Fnac servirá como um fundo garantidor de empréstimos que as companhias tenham interesse em pegar junto ao BNDES. Já há a sinalização do [Aloizio] Mercadante [presidente do BNDES] de disponibilizar o recurso para as empresas”, afirma o deputado Felipe Carreras. “Nada mais justo que as companhias tenham o fundo como garantidor para esses empréstimos. É fundamental para que elas possam adquirir novas aeronaves, aumentar a oferta de destinos e baixar os preços das tarifas”, explica o deputado.
Socorro às aéreas
O fato é que um dos segmentos mais duramente atingidos pelos efeitos econômicos da pandemia de Covid-19, o setor aéreo está prestes a receber um pacote de socorro do governo federal para evitar um “efeito dominó” no setor, onde a companhia Gol Linhas Aéreas solicitou e conseguiu na justiça norte-americana, um pedido de recuperação judicial, última cartada para continuar suas operações.
É possível que com a crise, o próprio mercado se acomode numa reestruturação. A companhia aérea Azul, por exemplo, fez uma oferta para comprar a concorrente Gol.
Na semana passada, o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, indicou que a instituição poderia conceder empréstimos às companhias aéreas, desde que o banco receba garantias. Em princípio, o crédito seria oferecido ao custo da Taxa de Longo Prazo (TLP), a taxa de juros utilizada pelo BNDES nos empréstimos concedidos. Sua principal finalidade é adequar os juros do crédito do BNDES àqueles normalmente praticados no mercado. Está descartado, por ora, o subsídio do banco às aéreas por meio de taxas de juros reduzidas.
A ideia é que o Fnac replique modelo semelhante ao do Fundo Garantidor de Operações (FGO), com recursos do Tesouro Nacional, que vem sendo utilizado para o refinanciamento de dívidas de pessoas físicas do programa Desenrola Brasil. A diferença entre os dois é que o Fnac é um fundo apenas contábil — criado para gerir recursos, ele não possui receita nem patrimônio próprios. Caso sejam necessários desembolsos para cobrir eventual inadimplência, haveria custo para o Tesouro, o que é rechaçado pela equipe econômica.
No fim de janeiro, o Tribunal de Falências de Nova York aceitou o pedido de recuperação judicial apresentado pela Gol. Com dívidas acima de R$ 20 bilhões, a empresa reeditou o caminho escolhido por Latam e Avianca em anos anteriores, recorrendo à Justiça americana. A Latam entrou em recuperação judicial nos EUA em maio de 2020 e só saiu em novembro de 2022. A Azul concluiu, em outubro do ano passado, a renegociação de sua dívida com arrendadores e fabricantes de aeronaves.
“No pós-pandemia, as companhias aéreas ainda vivem momentos difíceis”, observa Carreras. “Diante das dimensões continentais do país, [o pacote de socorro às aéreas] é indispensável para o desenvolvimento econômico e social do Brasil e para termos uma indústria da aviação forte. É papel do Congresso Nacional e uma obrigação do governo dar a mão às empresas”, completa o deputado.
Segundo Carreras, o PL 3221 está maduro para ser votado pelos deputados e conta com a “boa vontade do governo”. “Nós já aprovamos a urgência, só falta votar no plenário. Tenho o sentimento de que os líderes da base estão convencidos. Há o empenho pessoal dos dois ministérios da área-fim, com os ministros [dos Portos e Aeroportos], Silvio Costa Filho (Republicanos), e do Turismo, Celso Sabino (União Brasil), na linha de frente”, di
“O próprio presidente da Embratur [Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo], Marcelo Freixo (PSB), também tem essa compreensão. Acredito que o governo já está convencido, o Congresso Nacional também. Está maduro para aprovarmos e darmos esse fôlego às companhias.”
O que dizem o governo e as aéreas
Em nota, o Ministério de Portos e Aeroportos afirma que “está trabalhando em conjunto com o Ministério da Fazenda na elaboração de um modelo operacional mais eficiente para enfrentar o desafio da dificuldade de acesso ao crédito enfrentado pelas empresas aéreas”. “As soluções estudadas passam pela utilização do Fundo Nacional de Aviação Civil (Fnac), que foi criado justamente para o desenvolvimento e fomento do setor de aviação civil”, confirma a pasta.“Contudo, não se restringem à utilização do fundo. Atualmente, o Fnac conta com cerca de R$ 7 bilhões, decorrentes das contribuições arrecadadas no programa de concessões dos aeroportos brasileiros. Como solução de curto prazo, está sendo construída a possibilidade de utilização de linhas de créditos já existentes, que exigem a realização de ajustes pontuais de regramento”, diz o ministério.
As três principais companhias aéreas do país também se manifestaram. Em nota, a Gol destacou que o setor “ainda se recupera da maior crise da história”. “A Gol entende que políticas públicas que tenham como objetivo o crescimento e o desenvolvimento do turismo e da economia no Brasil são muito bem-vindas”, diz a empresa.
Também por meio de nota, a Latam afirmou que “o Brasil precisa endereçar os desafios estruturantes para promover o crescimento da sua aviação”. “Nesse sentido, o desafio permanente é o custo da operação aérea no país, impactado pelo alto preço do combustível de aviação, a alta judicialização do setor aéreo, a dificuldade de acesso ao crédito e outros fatores locais, como a elevada carga tributária do país”, aponta a companhia. A Azul, por sua vez, preferiu não se manifestar.
Um ponto curioso de toda essa novela se refere a alta judicialização do setor aéreo.
Apedrejamento público é culpa das próprias empresas
Atire a primeira pedra quem nunca teve seus direitos desrespeitados pelas companhias aéreas em atuação no país. São coisas corriqueiras e que deixam furiosos passageiros que compram passagens caras e que recebem um serviço duvidoso.
Em longo artigo assinado por José Ricardo Botelho, CEO da Associação Latino-Americana e do Caribe de Transporte Aéreo (Alta), o executivo defende o setor.
Botelho destaca que em 2019, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reiterou que o cancelamento ou atraso de voos não implica automaticamente em dano moral presumido. Na decisão, originada do Recurso Especial nº 1.796.716 – MG, o STJ, ao se pronunciar sobre a responsabilidade da companhia aérea em caso de atraso, ressalta que o dano moral precisa ser comprovado. A ministra Nancy Adringhi, relatora do caso, destacou a importância de analisar diversas circunstâncias, como o tempo para a resolução do problema, as alternativas oferecidas aos passageiros e o suporte prestado durante o atraso.
“Essa decisão marca um progresso na abordagem do assunto, uma vez que seu teor alinha o país com a lógica da teoria do dano, evidenciando a importância de sua comprovação efetiva. Isso impede práticas que visam o enriquecimento ilícito e a exploração do sistema judicial por meio de sites ‘abutres’ (aqueles que atraem passageiros com a promessa de ganhar causas contra companhias aéreas, mesmo por motivos cuja responsabilidade, perante a lei, não seja das empresas)”, destacou o executivo.
Ele prossegue o artigo salientando que: “A aviação comercial brasileira enfrenta um desafio peculiar, com 98,5% das ações judiciais globais do setor concentradas no país, apesar de seus serviços seguirem padrões internacionais de qualidade [fato contestado pelos clientes que se sentem lesado
Surpreendentemente, em métricas como atrasos, cancelamentos e extravios de bagagem, o Brasil figura entre os melhores do mundo. Entretanto, os altos custos decorrentes de demandas judiciais ameaçam a viabilidade das empresas aéreas. Por isso, chegou a hora de enfrentar o problema com profissionalismo, a luz da lógica jurídica, porque o setor está sendo desestabilizado e o grande prejudicado é o próprio usuário do sistema de aviação”.
O CEO da Alta diz: “Vale ressaltar que o avanço legislativo promovido pela lei nº 14.034/20, ao alterar o Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA), foi significativo. Esta lei, que inclui medidas como o artigo 251-A no CBA, explicitamente estabelece a necessidade de comprovação do dano extrapatrimonial em casos de falhas no contrato de transporte. Tal mudança legislativa fortalece a tendência jurisprudencial recente do STJ, como demonstrado nos Resp nº 1.584.465-MG e 1.551.968-SP, alinhando a legislação com decisões judiciais que já exigiam prova efetiva do dano moral.”
“Além disso, está em consonância com a política governamental de combate ao excesso de judicialização no transporte aéreo, buscando uma abordagem mais equilibrada nas relações de consumo do setor. Essa postura, mais criteriosa, é adotada devido à compreensão de que situações como atrasos, cancelamentos muitas vezes são oriundos de fatores externos a operação da companhia aérea, como – por exemplo – o fator climático. E todos sabem que, em aviação, segurança é um valor inegociável”, destaca Botelho.
“Agora, imagine que, por questões meteorológicas adversas, para proteger a vida, o voo não ocorra. Claro que isso vai gerar um impacto em diversos compromissos das pessoas, mas é justo usar ‘o risco da atividade’, sem qualquer vínculo causal, para gerar indenizações desproporcionais? Mesmo quando se está protegendo a vida de todos os que utilizam o sistema de aviação? Em qualquer teoria, a relação causal é necessária. Então, por que na aviação deveria ser diferente? Seria melhor então, mesmo em situações adversas, decolar? Claro que não”, defende o executivo chefe da Alta.
Ele prossegue: “Sabendo de suas responsabilidades, a indústria aderiu a um moderno sistema de solução de conflitos do Ministério da Justiça, conhecido por ‘consumidor.gov’. Ali, cerca de 80% das demandas são solucionadas diretamente com o consumidor, em média em menos de cinco dias. E mesmo assim, posteriormente, processos por danos morais são gerados. Ora, onde está a condição da ação? Onde está o interesse de agir se tudo já foi solucionado? O que se gera é um ‘incentivo perverso’ e ilógico para não negociar, para não solucionar. Uma bola de neve onde, na verdade, o próprio consumidor está sendo prejudicado. Esse racional, precisa ser compreendido por quem aplica o direito. Não é possível o uso do direito como um fator punitivo porque isso desestabiliza um dos setores mais importantes de nossa economia, jogando o custo para os usuários e, pior, impedido que esse serviço essencial seja acessível a toda a população”, advoga o CEO.
“A decisão do STJ e as disposições legais estabelecidas pela lei 14.034 parecem inaugurar um caminho que, se adotado pelo sistema judiciário brasileiro, reduzirá a insegurança jurídica no país”, garante José Ricardo Botelho.
Em vário parágrafo do artigo o CEO da Alta aborda outras minúcias, até concluir: ”Torna-se essencial buscar um equilíbrio entre a liberdade de tomar decisões, respeitando as normas legais e a própria legislação vigente. Existe uma orientação definida pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Poder Executivo que deve ser observada. Isso não apenas aliviará a carga nos tribunais, mas também incentivará alternativas à litigância, como a conciliação. O propósito é assegurar um setor de aviação mais sustentável e acessível a todos os brasileiros. Em última análise, onde um avião aterrissa, é garantido que haverá mais desenvolvimento, mais empregos, mais infraestrutura e muito mais benefícios”, assegura.
* Reportagem: Val-André Mutran – Correspondente do Blog do Zé Dudu em Brasília.