Brasília – Os anarquistas acreditam que nenhuma forma de dominação – inclusive a do Estado sobre a população – ou de hierarquia é aceitável e pregam a cultura da autogestão e da coletividade. Um estado anarquizado as avessas é o que o Estado moderno tem oferecido aos consumidores. Tome-se como exemplo a anarquia que é a errática política de contenção de danos após uma das mais severas crises hídricas no Brasil, e a política destrambelhada do governo de Jair Bolsonaro (PL) no setor. Pouco ou nada difere da também destrambelhada Dilma Rousseff (PT) que quase leva o sistema à falência.
Com volume recorde de chuvas, os reservatórios das hidrelétricas em quase todo o país – exceto na região Sul – que vive o agravamento de uma estiagem fora do comum, estão praticamente recuperados, mas, a mão pesada do governo no bolso do consumidor não dá trégua. Recorrer a quem? Às urnas, obviamente.
Políticos da Bancada do Pará passaram o ano passado se gabando que o preço da conta da energia elétrica ia cair. O nariz do Pinóquio ficou até com inveja diante de tamanha desfaçatez. Mentem na cara dura, como se estivessem lidando com ignorantes do outro lado do balcão.
Com chuvas acima da média e avanço no armazenamento dos reservatórios de hidrelétricas nas principais bacias do país de acordo com o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), isso não significa um alívio imediato na conta de luz dos brasileiros, calote à vista? Talvez. Aumento da conta de luz? Com certeza.
O volume de água provocou transtornos, mas levou os lagos das usinas do subsistema Sudeste/Centro-Oeste a ganharem rapidamente quase 13 pontos percentuais em reservação, saindo dos 25% de capacidade registrados ao final de 2021 para 37,84% nos dados de 18 de janeiro. No subsistema Norte, apenas no Pará, a Eletronorte vive perigo de catástrofe, tal o nível do reservatório da Represa da Hidrelétrica de Tucuruí, segundo maior reservatório do país.
Com mais de 4 mil famílias desabrigas apenas em Marabá, a Eletronorte, que opera a usina de Tucuruí, liberava há duas semanas 35.957 m ³ de vazão pelas comportas da represa e retinha 207 m ³, pouco mais de 0,5% do volume total.
O reservatório tem mais de três mil quilômetros quadrados, três vezes a área do município de Belém, a capital do Pará, mesmo assim, aumentou 5 centímetros. Passou da cota de 73,64 metros para 63.69 metros, a 30 centímetros da cota operacional máxima para os 45 bilhões de m ³ represados.
Com essa liberação quase total de água, a cheia em Marabá não estacionou e já supera 13,67 metros, mais de três metros acima da cota de alerta, que é de 10 metros, cota que autoriza a decretação de estado de calamidade pública, reconhecida pelo governo do Estado na semana passada. E estamos apenas na metade de janeiro, quando o pico dessas enchentes é geralmente registrado na segunda metade do mês de fevereiro.
Mas a Eletronorte parece confiante na redução das chuvas nos próximos dias, embora a natureza não receba ordens de burocratas.
A região foi foco maior de preocupação durante a crise hídrica de 2020/2021 por responder por 70% da geração hidrelétrica do país. Com as chuvas ocorrendo nas cabeceiras e nas próprias barragens das usinas, o ONS afirmou na semana passada que, “por hora, podemos dizer que os reservatórios estão se recuperando bem.”
A reserva quanto à afirmação de franco restabelecimento se deve às expectativas com relação à quantidade total de chuvas ao fim do período úmido, que garantirá maior ou menor tranquilidade ao sistema. Apesar da incerteza, a avaliação do ONS é de que “os cenários indicam que não teremos problema para atendermos a demanda de carga de energia no Sistema Interligado Nacional em 2022”. É o preço da conta de luz?
Projeções
De acordo com as projeções do Operador Nacional são de que o subsistema Sudeste/Centro-Oeste atinja 41,7% de seu armazenamento total no mês de junho, quando se inicia o inverno, estação caracteristicamente mais seca. A reserva de água esperada é quase 14% mais alta do que aquela observada no mesmo mês do ano passado, quando os reservatórios guardavam apenas 28% de capacidade.
A previsão, ainda assim, fica bem abaixo de índices como os 72% de armazenamento observados em junho de 2012 – patamares que o país nunca mais alcançou. A comparação caracteriza uma longa sequência de anos com chuvas aquém do necessário e dificuldade para encher os reservatórios.
Os reservatórios estão em melhor condição, mas não estão recuperados. E se não chover – ou se chover muito menos do que a média – [a solução] é continuar despacho térmico fora da ordem de mérito, restrições operativas, para ter mais água nos reservatórios e afastar um risco de falta de energia”, avaliam técnicos do setor, ao admitir que o ONS ainda poderá lançar mão de ações que encareceram a conta em 2021, mas evitaram desabastecimento.
A previsão é que o ONS ainda vai necessitar de despacho térmico pelo menos até março, apesar da recuperação inicial garantida pelas chuvas. “Mesmo que o modelo não diga que precise, [o Operador] deve continuar despachando essas térmicas para ter segurança no sistema. Provavelmente pode esticar um pouco mais para chegar no período seco e sentir a situação”, é o cenário, que significa conta de luz nas alturas.
Com chance da eventual manutenção de geração de energia mais cara para atender os brasileiros apesar da água que tem chegado, a retirada das cobranças adicionais da conta de luz a partir do mês de maio pode estar no horizonte, mas não é garantia.
R$ 2,4 bilhões para bancar desconto na conta de luz de quem economizou
Análise da Megawhat aponta que a bandeira tarifária deve recuar para o patamar verde – isto é, sem cobrança adicional – assim que deixar de vigorar a bandeira escassez hídrica, que acrescenta R$ 14,20 por 100 kWh consumidos desde setembro de 2021 e será mantida até abril, de acordo com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
Se o cenário esperado se confirmar, será a primeira vez desde janeiro de 2021 que o brasileiro pagará apenas pelo seu consumo na conta de luz, sem acréscimos motivados por condições desfavoráveis de geração.
Pode haver acionamento do patamar amarelo nos meses de junho, julho e agosto, voltando ao verde entre setembro e dezembro. Portanto, em 2022 não teremos nada do prometido pelos políticos, ao contrário, preparem o bolso.
Adotadas pela Aneel em 2015, as bandeiras tarifárias têm quatro patamares (verde, amarelo, vermelho 1 e vermelho 2) que sinalizam produção mais ou menos custosa de eletricidade – que pode sofrer interferência de secas, alta dos combustíveis utilizados por termelétricas etc.
No caso das bandeiras amarela e vermelhas, os acréscimos na conta de luz variam de R$ 1,87 e R$ 9,49 a cada 100 kWh consumidos; a verde é isenta de cobrança extra, por significar que a geração ocorre em condição favorável. A divulgação da bandeira tarifária a vigorar no mês de maio deve ocorrer em 29 de abril, segundo calendário da agência reguladora.
As chuvas mais volumosas, dentro do período esperado, dão início à recomposição dos reservatórios, mas são incapazes de reverter outro custo que chegará na conta do consumidor: o déficit financeiro da crise e sobre isso os políticos não dizem uma palavra sequer.
Estimativas recentes indicam que as despesas decorrentes da crise hídrica devem alcançar a cifra de R$ 17 bilhões, mas nem tudo será coberto pela bandeira criada com essa finalidade. O valor é insuficiente para fazer frente aos gastos com o despacho térmico e demais medidas de enfrentamento.
Para cobrir o buraco, as distribuidoras terão acesso a operações de crédito, previstas em Medida Provisória editada pelo governo federal em dezembro de 2021. O socorro às empresas, na prática, vai impedir que a conta do déficit seja repassada aos consumidores de uma só vez nos reajustes deste ano – que poderiam ultrapassar os 21%, na previsão da Aneel. Assim, o preço da crise será diluído em cobranças que vão ocorrer de modo parcelado, com juros da operação. A conta vai aumentar e também sobre isso, nenhum político abre a boca.
O ministro Bento Albuquerque (Minas e Energia) afirmou na quinta-feira (20) que um total de R$ 2,4 bilhões será destinado para desconto na conta de luz dos consumidores que, entre setembro e dezembro, fizeram redução voluntária do uso de energia. O bônus será abatido das contas de janeiro. O consumidor, entretanto, já colocou as barbas de molho porque esse tipo de política e promessa sempre resultam em tapeação, engodo e calote do governo.
Disse o ministro: “No mês de janeiro as distribuidoras de energia vão depositar nas contas de consumidores R$ 2,4 bilhões. Recurso dos consumidores que fizeram economia voluntária de energia, de pelo menos 10%; Presidente, R$ 2,4 bilhões na conta de 40% dos consumidores brasileiros. Automaticamente na conta, vai ser abatido na conta do consumidor”, em conversa com o presidente Bolsonaro durante a tradicional live semanal realizada às quintas-feiras.
“Isso também foi fundamental para que nos superássemos o desafio da escassez hídrica que tivemos, da seca que tivemos no país”, disse Bento. Como o leitor pode conferir na apuração da reportagem, em nada, isso corresponde à realidade.
Como parte para combater a crise hídrica, o Programa de Incentivo à Redução Voluntária do consumo de energia elétrica vigorou de setembro até o final de 2021 e concedeu um bônus de R$ 50 a cada 100 kWh reduzidos. A economia, no entanto, ficou restrita a uma faixa que varia entre 10% e 20%. Quem estiver abaixo não recebe o prêmio e quem ultrapassar será remunerado pelo teto.
À época do lançamento, o programa gerou críticas. Para o ex-diretor do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) Luiz Eduardo Barata, “redução voluntária de consumidor residencial não existe”. Para ele, ou se “faz algo compulsório ou a economia vai ser pífia.”
Além do mais, como na prática os ganhos e perdas são rateados por todos os consumidores, ao final, mesmo aqueles que não fizerem economia pelo programa acabam beneficiados.
Definitivamente, viver no Brasil é tarefa apenas para profissionais.
Reportagem: Val-André Mutran – Correspondente do Blog do Zé Dudu em Brasília.